quinta-feira, 18 de julho de 2024

O esplendor da desigualdade

No sábado passado decidi me tornar uma pessoa disciplinada e adiantar a coluna, para não precisar mais virar a noite no desespero da véspera. Escrevo desde que me tenho por gente e, desde que me tenho por gente, entrego tudo em cima do prazo, quando não irremediavelmente atrasado. A minha vida é uma corrida contra um relógio atônito que me olha de banda e que não entende o porquê do esforço: há matéria-prima abundante no mundo para que qualquer colunista de variedades, com um mínimo de organização mental, possa escrever com calma.


Ali estava o casamento do ano na Índia, uma celebração de opulência sem precedentes. O jornal The Guardian, de Londres, calcula que os Ambani, família mais rica da Ásia, gastaram nele cerca de US$ 600 milhões ao longo de cinco meses, quantia inimaginável para a maioria de nós, mas insignificante diante dos seus US$ 115 bilhões — o equivalente a uns R$ 50, digamos, para quem tem R$ 10 mil no banco.

Um ótimo assunto!

E aí a internet explodiu com o atentado a Trump. Todos os meus planos foram notícia abaixo: passei os dias lendo e ouvindo incontáveis análises sobre o panorama político nos Estados Unidos. Quando voltei ao casamento do ano já estava atrasada de novo. Meu destino é varar madrugada, escrevendo em cima do laço.

Enfim, foram festas em cima de festas, banquetes intermináveis e shows exclusivos. Houve um cruzeiro pelo Mediterrâneo para mil pessoas com paradas em Cannes e Portofino. Na lista de atrações das várias comemorações estiveram Rihanna, Backstreet Boys, Justin Bieber, Shakira, David Guetta, Pitbull, Katy Perry, Andrea Bocelli e os principais nomes da música indiana, a começar por A. R. Rahman, que ganhou um Oscar em 2009 por “Jay ho”, a canção do filme “Quem quer ser um milionário”.

Para o casamento propriamente dito, agora no fim de semana, um centro de convenções maior do que o Riocentro foi transformado em aldeia cenográfica para 1.400 convidados, de Boris Johnson a Kim Kardashian, passando por constelações inteiras do firmamento indiano. Foi um desfile interminável de roupas extravagantes bordadas a pedrarias, ouro e prata. Nunca se viram joias iguais em público — ou nunca, pelo menos, desde 1971, quando Indira Gandhi acabou com os privilégios dos marajás.

Uma sucessão de eventos fascinante e obscena ao mesmo tempo.

Os Ambani são a face mais visível da desigualdade na Índia, onde o 1% mais rico detém 40% da riqueza do país. A renda média mensal é de pouco mais de R$ 800, menos de um terço da renda média no Brasil. A pobreza vem diminuindo, mas há mais de meio século não se vê concentração de renda tão elevada.

Faz tempo que esse tipo de ostentação deixou de ser elegante num mundo consciente dos seus desafios — mas, ainda assim, é difícil interpretar o significado e o impacto de tal extravagância, sobretudo quando identidade e branding se confundem. A Índia, que há séculos é conhecida pela pobreza, busca uma nova imagem.

O que vimos na mídia e nas redes sociais não foi um acontecimento de família, mas uma jogada corporativa, voltada para consolidar o prestígio da família Ambani e do seu conglomerado (e que, agora mesmo, acaba de render meia página no GLOBO).

A máquina de RP do grupo deve ter ficado muito contrariada com aquele atirador inconsequente, que roubou as manchetes no fim de semana.


A família mais rica da Ásia gastou US$ 600 milhões numa festa de casamento. Mas o atentado a Trump roubou as manchetes do fim de semana
Cora Rónai

Nenhum comentário:

Postar um comentário