terça-feira, 10 de maio de 2022

Os santos canalhas

O moralismo é a mais hipócrita deformação do caráter humano. Todo moralista carrega sobre a cabeça uma nuvem cinzenta onde se guardam pedaços escondidos de cada defeito moral que ele ostensivamente combate. É por isso que não me movem nem comovem certas campanhas públicas de moralização. Fico sempre com uma orelha atrás e um olho enviesado. Por que sei que entre os sinceramente honestos, há os que só reclamam por não participarem da partilha do butim.

Certa vez, num táxi do Recife, tive de ouvir a conversa irritada do motorista contra tudo que era político. “Tudo ladrão. Num tiro ninguém”. Dizia ele, enquanto batia com a mão direita no volante. Era um homem indignado com a corrupção.

Quando chegamos ao pátio da Alfândega, eu perguntei quando devia. Ele puxou a tabelinha, que complementava a marcação do taxímetro, e respondeu: “Vinte e sete reais”. Eu pedi pra ver a tabela. E tava lá, dezessete reais. Ao ser flagrado querendo surrupiar dez reais, ele pediu desculpas e disse que tava com a vista turva. Não resisti e respondi: “O senhor tem razão, num tire nenhum. É tudo ladrão”. Fechou a cara e eu fechei a porta. E fui ser roubado na livraria.

Na estrada federal que passa por Itaú e vai até Pau dos Ferros, estrada do PAC, que serve de onomatopeia quando o carro passa pelos buracos, pac pac, eu viajo nela quase todos os dias. Com menos de seis meses da sua conclusão já está cheia de remendos e buracos. Mais buracos que remendos.

Pois bem. Alguns moradores de pequenas casas na beira da pista resolveram faturar algum. Enchem um carro-de-mão com barro e vão, com uma pá, tapar os buracos. Quando se aproxima um veículo, eles jogam o barro no buraco. E estiram a mão pedindo um trocado. Ao passar e olhar pelo retrovisor você vai ver o mesmo barro sendo retirado do buraco e devolvido ao carro-de-mão. Pra eles é melhor que o pac continue no pac pac.

Na Semana Santa, alguns moleques aproveitam os quebra-molas das pistas urbanas para fazer uma espécie de pedágio. Quando o carro modera, eles esticam um cordão segurado nas pontas, nos dois lados da estrada. “Uma ajudazinha pro Judas, meu senhor”. É o pedido. Numa dessas paradas, eu dei duas moedas de um real, ao menino de meu lado. O outro moleque do lado direito, perguntou gritando: “Quanto o coroa deu”? E o que havia recebido os dois reais respondeu de pronto: “Deu cinquentinha. Tem vinte e cinco seu”. Pronto. O pobre do Judas, deitado ao sol, na beira do caminho, com sua boca vermelha e olhos negros, acabara de perder um real e meio.

O povo é sábio e honesto? Pode até ser sábio, mas é colega da tchurma. Não fosse assim os eleitos em cada pleito seriam outros. São os mesmos e seus descendentes.

Taí a pátria que nós temos. Da disputa entre a dominação corrupta e a santidade canalha. Té mais.
François Silvestre, Novo Jornal (Natal-RN)

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