segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

O golpe para abolir a democracia e o silêncio cúmplice da direita

Conta a lenda que um escafandrista, nos anos 1970, vestido com sua pesada roupa de mergulho, entrou no bar e restaurante Antonio’s, reduto da boemia carioca, no Leblon, sentou-se a uma mesa de canto, tirou a máscara e pediu um chope.

As outras 12 mesas estavam ocupadas, a algazarra era grande, mas todos fingiram não ver o escafandrista. Depois de algum tempo, o jornalista João Saldanha, irritado com a indiferença coletiva diante do que acontecia, subiu numa cadeira e falou em voz alta:

– Pessoal, tem um homem aqui, um escafandrista, com capacete e tudo, tomando cerveja, e isso não é normal, não pode ser normal.



Ninguém deu bola para o que disse Saldanha, nem mesmo o pacato escafandrista que, depois de tomar três cervejas e servir-se de petiscos, pediu a conta, pagou, repôs o capacete de metal que escondia todo o seu rosto e foi embora se arrastando.

A normalização do absurdo não é coisa dos cariocas da Zona Sul nem de zona alguma – é dos brasileiros em muitas partes. Antigamente, podíamos dizer que ela mostrava o quanto éramos um povo tolerante, acolhedor e capaz de conviver em relativa paz.

Hoje, não mais. E desconfio que amanhã será muito menos. Tudo fruto da normalização do absurdo na política que avançou a galope nos últimos seis anos, despertando nossos instintos mais rudes e primitivos. Não há sinais de que isso irá arrefecer tão cedo.

Bolsonaro e seus comparsas são os maiores responsáveis, mas não só; também os que os apoiaram com entusiasmo e principalmente os que assistiram em silêncio a escalada da adoção de medidas extremas para abolir nosso modo de vida.


Não podia ser normal um presidente que acusou fraude no pleito que o elegeu com grande folga de votos. Não podia ser normal um presidente que, indiferente ao sofrimento coletivo, sabotou todos os meios de enfrentar a maior pandemia deste início de século

Não se pode dizer apenas conservadora e ainda por cima civilizada uma direita que finge desconhecer a gravidade do conteúdo explosivo do relatório da Polícia Federal sobre os golpes abortados de dezembro de 2022 e de 8 de janeiro de 2023.

O que disseram até aqui as vozes mais representativas e ouvidas dessa direita? O ex-presidente Michel Temer (MDB) limitou-se a dizer que não vê riscos para a democracia e que não há clima para golpe. Houve riscos e houve clima? Ele não comenta.

Quanto à participação de militares no plano de matar Lula, Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, Temer a minimizou, dizendo que somente uns poucos se envolveram. Os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado nada disseram.

Os presidentes dos maiores partidos da direita (MDB, União Brasil, PP, PSD, Republicanos, PR), tampouco. Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, sugeriu que a investigação da Polícia Federal “carece de provas”, mas saiu em defesa de Bolsonaro.

Tarcísio é o nome mais cotado da direita que se diz democrática para disputar a eleição presidencial daqui a dois anos. Ronaldo Caiado, governador de Goiás, que já se lançou candidato, disse sobre o indiciamento de Bolsonaro:

– E daí? A vida continua. Se eu fosse ficar preocupado com as pequenas coisas, eu não governaria.

Não é uma pequena coisa o indiciamento de um ex-presidente pelos crimes de golpe de Estado, abolição violenta da democracia, roubo de joias e organização criminosa. O Brasil nunca viu nada sequer parecido. Bolsonaro deverá ser condenado e preso.

O governador Cláudio Castro, do Rio, disse não acreditar em tentativa de golpe, mas sim “em baderna”. O governador Ratinho Jr., do Paraná, afirmou que indiciamento “não é sinônimo de condenação”. De fato não é, mas ninguém disse que era.

Calado estava, calado (não Caiado) permanece Romeu Zema, governador de Minas Gerais. O único nome de peso da direita a condenar o golpe foi Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul. Essa é a gente que se oferece para suceder Lula e fazer melhor do que ele?

Os chefes militares não disseram uma só palavra para reafirmar seu compromisso com a democracia. Mesmo os que se opuseram ao golpe e os que ficaram em sua “zona de conforto”, nada viram de suspeito nos acampamentos de golpistas à porta de quarteis.

Se viram, foram cúmplices com o que por um triz não deu certo.

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