— Há mais escombros aqui do que na Ucrânia — testemunhou Charles Birch, que chefia o trabalho de desativação de bombas não explodidas em Gaza, sob o guarda-chuva do Serviço de Ação contra Minas das Nações Unidas (UNMAS).
A empreitada de sua equipe será pesada, visto que até 10% de foguetes, bombas e mísseis disparados em conflitos modernos simplesmente não funcionam. Para a população civil de Gaza, que percorre escombros calçando chinelos de dedo e escava prédios desossados com as mãos, um perigo a mais no amanhã. Hoje, o enclave desamparado está repleto de crianças e adultos sem um, dois ou três membros.
Eram 2h da madrugada desta quarta-feira, dia 5, quando os cerca de 6 mil refugiados nas dependências da escola Al-Sardi, em Nuseirat, sul de Gaza, desceram a novo patamar de pavor: bombas despejadas por caças israelenses haviam acertado a escola em cheio. Foi um despertar para o inconcebível. Segundo a agência Reuters, 14 crianças e nove mulheres estavam entre as dezenas de mortos espraiados. Em resposta à rotineira grita mundial, um comunicado glacial do Exército de Israel. O bombardeio fora “um ataque preciso”, baseado em informações confiáveis dos serviços de inteligência — de 20 a 30 terroristas palestinos usavam o local como base operacional. O porta-voz acrescentou não estar ciente de quaisquer vítimas civis e disse que ele “seria muito, muito cauteloso ao aceitar qualquer coisa que o Hamas divulgue”.
Duas perguntas elementares: se os serviços de inteligência israelense são tão confiáveis assim, como desconheciam o abarrotamento de milhares de famílias palestinas na escola? Ou conheciam e desconsideraram o fato? Consta de qualquer manual de Direito Humanitário que “atacar ou usar edifícios da ONU para fins militares” é crime. Isso vale tanto para o Hamas, que se escuda em civis e faz uso militar de edifícios da ONU, como para o governo de Benjamin Netanyahu, que ataca, bombardeia com civis dentro e ainda se arroga razão.
A escola bombardeada é uma das 300 outras de Gaza administradas pela UNRWA, a agência da ONU de assistência humanitária aos refugiados da Palestina. Fechadas desde o início da guerra de retaliação israelense ao ataque sofrido em 7 de outubro, elas viraram abrigos para as massas de civis errantes, enxotados, desenraizados e sem chão. Como essas escolas são providas de painéis solares e usinas de dessalinização, tornaram-se um oásis para quem está à deriva. Sam Rose, diretor de planejamento da UNRWA, fez um relato contundente das cinco semanas que passou em Gaza.
— Normalizamos o horror — resumiu em entrevista ao jornal britânico The Guardian.
A própria população civil de Gaza procura compartimentalizar o dia a dia, para se proteger da realidade.
Do ponto de vista político e militar, é compreensível que o governo de Israel descarte como desprovido de credibilidade qualquer dado fornecido pela administração do Hamas — mesmo quando sabe que o dado é próximo do real. Israel também procura desacreditar como fantasioso o “jornalismo na veia”, muitas vezes em tempo real, praticado por incansáveis repórteres palestinos de Gaza. E considera as organizações humanitárias ligadas à ONU como comprometidas com o inimigo. Cabe então explicar o motivo por que, até hoje, o governo de Benjamin Netanyahu não permitiu o acesso à zona de guerra de um único jornalista ou equipe profissional independente. Meses atrás, um ou outro repórter de CNN, BBC e outras mídias pôde realizar uma breve “visita ao front” estritamente controlada. Desde então, nem isso, o que resulta numa situação de censura à informação sem precedentes nos tempos modernos.
Para desalento de entidades como Repórteres Sem Fronteiras, a situação é alarmante. Mais de 92 jornalistas palestinos já morreram em Gaza desde o início da guerra (22 deles durante coberturas); trabalham com recursos mínimos, estão exaustos e pedem a colegas das grandes mídias ocidentais que venham atestar o horror.
É inevitável que um dia os portões de Gaza serão arrombados e as entranhas da História expostas. Talvez só então nos perguntaremos por que não impedimos tamanha desumanidade.
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