domingo, 27 de março de 2022

Por um tempo sem heróis

1.Três semanas depois, o crime continua e vai continuar até não se sabe quando – cada vez mais destruidor, violento, revoltante, porque se mantém toda a sua cruel desumanidade e se agravam as suas tremendas consequências. Consequências para a Ucrânia e o povo ucraniano, em primeiríssimo lugar, mas também para outros países e povos: para as relações entre eles, para as suas condições de vida e para as garantias da soberania nacional. E consequências para esse valor supremo que é a paz no mundo. Assim, de que mais poderei aqui falar?


2. As imagens que sem cessar nos chegam de cidades bombardeadas, bairros residenciais e edifícios atingidos, a arder ou em ruínas, famílias com falta de tudo ou já destroçadas, inumeráveis feridos, mortos até abandonados nas ruas, velhos, mulheres e crianças (crianças com um sorriso lindo ou um olhar de espanto) em fuga do invasor estrangeiro, em estado penoso, deixando a sua pátria, a sua terra, a sua casa – as imagens falam por si.

Não é só, não é tudo, há “outro(s) lado(s)”? Pode ser. Mas tais imagens evidenciam uma realidade terrível, com uma causa indesmentível. Face a elas, e a tudo o mais que se sabe, não há, não pode haver, justificações nem atenuantes para o que a Rússia de Putin está a perpetrar. Justificações ou atenuantes só podiam existir se a Rússia estivesse a responder a uma invasão semelhante, ou para evitar uma sua comprovada iminência, o que obviamente não é o caso.

3. Há muitas situações horríveis a ocorrer noutras latitudes? Claro que sim, embora do ponto de vista da paz e da segurança mundiais, incluindo de um eventual conflito nuclear, não se possam de nenhum modo comparar à invasão da Ucrânia. Além de, insisto, nenhum crime poder justificar outro crime. Se há, porém, como em geral há, dolosas ou culposas ações, circunstâncias, fatores antecedentes, a outros atribuíveis, que contribuíram para tais situações, no caso a agressão armada russa, devem ser estudados, analisados, ponderados. Mas para procedimentos e efeitos futuros, não para desculpar Putin e o seu regime autocrático.

Idealmente é assim. Realisticamente, porém, esses antecedentes têm de ser tomados em conta quando se “negoceia” o, por todos os motivos, indispensável cessar-fogo e o regresso dos invasores ao seu país, mantendo a Ucrânia a sua soberania nacional. Com, pelo menos, uma “limitação”, pois, de toda a evidência, a Ucrânia será forçada a renunciar a vir a integrar a Nato, como desejava e, como se vê, necessitava.

4. O povo ucraniano e o seu Presidente, Volodymyr Zelensky, têm demonstrado grande espírito de resistência e de coragem na defesa da sua pátria. Coragem física e moral. Mas Zelensky precisará de ainda muito mais coragem moral – de par com lucidez e visão políticas, sentido da medida e capacidade argumentativa – nas “negociações” para a paz. Porque, a haver um mínimo de justiça ou de decência, o máximo seria a Ucrânia admitir a dita renúncia à integração na Nato, e a Rússia pagar a “reconstrução” do país. Parece claro, porém, que a primeira concessão não chegará para satisfazer Putin, e a segunda pretensão seria puramente lírica.

Então, face à inevitabilidade, dado o seu imenso potencial bélico, de uma vitória militar russa, com maior destruição e sofrimento para a Ucrânia e os ucranianos, Zelensky, repito, precisa de ainda muito mais coragem moral para procurar e assumir um entendimento com outras “concessões”, preservando a dignidade nacional, do que para se bater de armas na mão e morrer…

5. Morrer, como tantos já morreram, em defesa da sua terra, numa luta desigual, depois de matarem muitos russos, na sua imensa maioria também “inocentes”, forçados a fazer uma guerra injusta e sem causa(s). Os que morrem são os heróis que Zelensky, compreensivelmente, não se tem cansado de glorificar e condecorar a título póstumo. O que me faz lembrar Brecht: “Pobre pátria que precisa de heróis…”

Pois é, ansiamos todos, e neste momento à frente de todos o povo da Ucrânia, por um tempo e um mundo em que não haja, não sejam necessários, “heróis” – mas apenas mulheres e homens… Humanos.
José Carlos Vasconcelos

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