domingo, 4 de outubro de 2020

O governo é isso aí

De um governo se espera que governe, ou seja, que dê uma direção à administração, com planos bem definidos e disposição de negociar com o Congresso sua implementação. Do atual governo, contudo, a conclusão, perto da metade do mandato de Jair Bolsonaro, é que seria esperar demais que ele se dedicasse à faina.

É tão evidente que o governo Bolsonaro não consegue articular nenhuma política concreta, apenas lampejos e arroubos desconexos, que mesmo a crítica a esse incrível estado de coisas perdeu o sentido. Pois a crítica presume, da parte do crítico, a expectativa de que o criticado venha a se emendar e passe a fazer o que deve ser feito. E isso não vai acontecer, pois o governo Bolsonaro é essencialmente isso aí.

Há ilhas de excelência em meio a esse mar de profunda mediocridade, claro. Quando o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, diz num encontro com investidores que os juros vão imediatamente subir se o teto de gastos for desrespeitado, colocando o Brasil no caminho da insolvência fiscal, indica que há gente de muito bom senso em posições estratégicas no governo. Vai na mesma linha o secretário do Tesouro, Bruno Funchal, que afirmou recentemente que “aumentar despesa gera um resultado socialmente ruim, destrói empregos”, enfatizando o que deveria ser óbvio.

Outros setores que têm atuado razoavelmente bem no governo a despeito da mixórdia bolsonarista são a Agricultura e a Infraestrutura. No primeiro caso, a ministra Tereza Cristina vem dando duro para reparar os danos causados à imagem do País e ao agronegócio brasileiro em razão da atitude beligerante de Bolsonaro e da ala lunática do governo em relação ao meio ambiente. No segundo, o ministro Tarcísio de Freitas se dispõe a trabalhar com o que tem e elabora projetos de acordo com a realidade, algo raríssimo na administração bolsonarista.



Infelizmente, contudo, esses bons exemplos não são suficientes para desfazer a sensação generalizada de que o governo é irremediavelmente desorientado, resultado da inaptidão de Bolsonaro para o exercício da Presidência. Não é outra a razão do vexame do tal “Renda Cidadã”, ou “Renda Brasil”, ou seja lá que nome venha a ter o programa social que Bolsonaro quer usar no palanque. O incrível fiasco envolveu o primeiríssimo time do governo, do “superministro” Paulo Guedes ao líder na Câmara, deputado Ricardo Barros, passando pelo presidente da República em pessoa. Se já era difícil acreditar no que dizem os próceres do governo, agora é praticamente impossível.

O único projeto de Bolsonaro que vai de vento em popa é o eleitoral. O presidente vem aos poucos abandonando os bolsonaristas fanáticos, que só têm a lealdade cega a lhe oferecer, e decidiu entregar o governo de vez ao Centrão, em troca da permanência no poder e da viabilização de sua reeleição.

Se é isso, como parece ser, então é ocioso cobrar do governo que, enfim, governe. Por essa razão, mais do que nunca, a sociedade brasileira, especialmente sua elite – intelectual, empresarial e integrante dos Poderes Judiciário e Legislativo, além de governadores e prefeitos País afora –, deve se mobilizar para impedir que o País se renda à apatia.

Cada um deve se empenhar para fazer o que estiver a seu alcance, e que não dependa do desgoverno federal, para dar aos brasileiros em geral a sensação de que há um rumo, e que esse rumo não é o do precipício. Há sinais promissores: empresas têm demonstrado genuína preocupação com o meio ambiente e com a abertura de oportunidades para quem é historicamente marginalizado; o Congresso vem exibindo inegável perfil reformista, encaminhando discussões cruciais para o futuro do País; e muitos governadores e prefeitos têm trabalhado duro para enfrentar a pandemia, recorrendo à ciência em vez da mistificação bolsonarista.

Portanto, há saída. Se é esse o presidente que temos, o País deve então buscar soluções bem longe do Palácio do Planalto – o que talvez seja uma oportunidade de ouro para desenvolver no Brasil o sentido cívico, de participação ativa na vida política e de envolvimento efetivo com o futuro de todos.
Editorial - Estado de São Paulo

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