Na verdade, as mulheres sempre foram para a guerra, e algumas conseguiram, a custo, ficar nos relatos históricos. Por vezes são recordadas nos seus países de origem como heroínas nacionais, mesmo que tenham sido esquecidas pelo resto do mundo. Porém, «a grande maioria de mulheres guerreiras – de farda ou não, desejosas de combater ou movidas pelo desespero de se defenderem – foi relegada para as sombras da história, escondida em notas de rodapé ou quase apagada», afirma autora.
Aqui fica, em exclusivo para a VISÃO, um excerto do livro que conta a sua história e que chega agora às bancas.
Exceções insignificantes?
Quer a atração atual pelas heroínas da cultura pop, quer as batalhas persistentes pelo papel das mulheres-soldado nas Forças Armadas modernas partem do princípio de que as mulheres que vão para a guerra são anomalias históricas: Joana d’Arc [na imagem em cima], não G.I. Joana. Esta posição é resumida na afirmação incrivelmente imprecisa do historiador militar John Keegan de que "a guerra é […] a única atividade humana da qual as mulheres, salvo exceções muito insignificantes [o destaque é meu], estiveram sempre e em toda a parte afastadas. […] As mulheres seguiam o tambor, cuidavam dos feridos, tratavam do campo e reuniam as multidões enquanto o homem de família seguia o seu líder e até escavavam trincheiras para os homens se defenderem e trabalhavam em oficinas para lhes enviar armas. As mulheres, contudo, não combatem […] e nunca, em nenhum sentido militar, combatem contra homens".
Na verdade, as mulheres sempre foram para a guerra: combatiam para vingar as suas famílias, defender as suas casas (ou cidades ou nações), conquistar a independência relativamente a uma potência estrangeira, expandir as fronteiras do seu reino ou satisfazer a sua ambição.
Um punhado de mulheres abriu caminho à cotovelada até aos relatos históricos. Por vezes são recordadas nos seus países de origem como heroínas nacionais, mesmo que tenham sido esquecidas pelo resto do mundo. Porém, a grande maioria de mulheres guerreiras – de farda ou não, desejosas de combater ou movidas pelo desespero de se defenderem – foi relegada para as sombras da história, escondida em notas de rodapé ou quase apagada. Algumas desapareceram, porque se disfarçavam de homens para poderem combater, surgindo como mulheres nos registos só se os seus disfarces caíam por terra. Algumas foram mandadas para fora de cena: a minha história preferida é a do historiador que afirmou que uma mulher que combateu no cerco francês a Saragoça, em 1808, não contava como combatente, porque a sua vida estava em perigo e ela estava a defender-se. Outras que combateram no passado longínquo são subvalorizadas como lendas, mitos, folclore, exageros ou simplesmente mentiras descaradas, com a justificação de que os relatos dos seus atos ou da sua existência são escassos – uma indignidade à qual os seus congéneres masculinos são menos propensos. Algumas mulheres guerreiras são deliberadamente excluídas da história. Após a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o governo soviético deu instruções explícitas aos seus esquadrões de mulheres pilotos de caças altamente condecoradas para não falarem sobre as suas experiências no tempo da guerra. Até a história de mulheres-soldado modernas começou a ficar turva. Quando eu dizia às pessoas que estava a escrever sobre mulheres guerreiras, quase todas ficavam atónitas ao saberem que mulheres norte-americanas participaram oficialmente em unidades de combate aéreas e navais nos últimos vinte anos.
Algumas mulheres guerreiras são deliberadamente excluídas da história. Após a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o governo soviético deu instruções explícitas aos seus esquadrões de mulheres pilotos de caças altamente condecoradas para não falarem sobre as suas experiências no tempo da guerra
De certa forma, o desaparecimento das mulheres guerreiras faz parte da nossa tendência mais alargada de escrever a história no masculino. A tendência é explícita no mundo da história militar. Salienta o historiador militar David Hay: "A presunção de que a guerra é algo essencialmente masculino – seja a apoteose da masculinidade ou a encarnação do patriarcado – baniu o estudo das combatentes femininas para o purgatório académico." Porém, os contributos das mulheres na ciência, na literatura, na política e na economia também são frequentemente minimizados, ignorados ou esquecidos. Pesquise praticamente qualquer tema e encontrará outro exemplo, seja o papel crítico da classicista Alice Kober na decifração da escrita Linear B ou a existência de brigadas de bombeiros voluntários totalmente femininas no início do século XX. Rachel Swaby descreve a escrita sobre estes contributos esquecidos como "reveladora de uma história escondida do mundo".
No caso das mulheres guerreiras, a tendência para apagar os papéis das mulheres na história é complicada pela questão contestada de se as mulheres devem ou não combater. Muitas pessoas que aplaudem as altamente sexualizadas mulheres guerreiras da cultura popular sentem-se menos confortáveis quando confrontadas com imagens reais de mulheres camufladas com cabeças rapadas na recruta ou na escola de Rangers. Na verdade, esse contraste chega a muito do desconforto social multicultural e de longa data com as mulheres guerreiras – o medo de que as mulheres que escolhem combater percam a sua feminilidade ou, pelo contrário, que a sua presença "feminilize" o exército, tornando-o assim menos eficaz, menos agressivo, menos sério ou simplesmente menos. É uma discussão antiga: quando Platão argumentou que as mulheres deveriam ter o mesmo treino que os homens e ser usadas nas mesmas tarefas, incluindo o treino para a guerra, avisou: "Não devemos ter medo das piadas do género que os espertos irão fazer sobre tal mudança na cultura física e artística, muito menos sobre as mulheres que pegam em armas e montam cavalos."
Se analisarmos atentamente as discussões sobre se as mulheres deveriam poder participar em combates nas Forças Armadas norte-americanas, torna-se evidente que quem está em lados opostos da discussão nem sequer coloca as mesmas questões, o que acontece há muito tempo. Após a Segunda Guerra Mundial, quando o Congresso ponderou sobre permitir ou não que as mulheres fossem membros regulares permanentes das Forças Armadas, defensores do Women’s Armed Services Integration Act, entre os quais o general Dwight D. Eisenhower e o almirante Chester W. Nimitz, argumentaram com o valor de usar mulheres em funções "tradicionalmente femininas" e com a potencial necessidade de uma mobilização rápida em consequência das tensões da Guerra Fria. Críticos da legislação levantaram questões sobre o impacto de "insuficiências" biológicas femininas na eficiência das Forças Armadas, na masculinização das mulheres-soldado e no regresso a uma cultura típica do tempo de paz da domesticidade feminina.Imagem da Marselha desenhada por Gustave Doré no séc XIX, com a tradicional representação feminina da República em armas
Hoje, quem defende que as mulheres deveriam poder assumir funções em combates diretos argumenta em termos de direitos iguais e da natureza do combate na guerra moderna, bem como daquilo que define um combatente, um não combatente e a frente. Por outro lado, os argumentos que defendem que as mulheres não devem ir para a guerra estão profundamente enraizados em ideias sobre o que significa ser mulher e sobre o que significa ser homem. Tais argumentos estendem-se desde ideias culturais e tabus em torno da família, da maternidade, da gravidez e da menstruação até questões banais sobre dispor de instalações físicas para as mulheres-soldado. Os opositores à ideia das mulheres em combate exprimem medos de que uma mulher-soldado engravide para evitar ser mobilizada, referindo que a gravidez é a única incapacidade temporária que um membro das Forças Armadas pode infligir a si próprio sem ser penalizado. Perguntam como irão as mulheres-soldado usar a latrina numa zona de combate. Argumentam que as mulheres não são aptas, ao nível emocional, para combater, porque são naturalmente mais cuidadoras do que os homens, e, por outro lado, dado que os homens são programa- dos para proteger as mulheres, a presença destas no campo de batalha distrairá os seus camaradas das suas funções. Consideram que as mulheres não têm força física nem resistência para a função, quer esta implique usar uma armadura de placas de metal medieval ou os coletes à prova de bala atuais, mantendo uma marcha forçada, carregando uma metralhadora de vinte e três quilos até às batalhas, ou salvando um camarada atingido.
"os argumentos que defendem que as mulheres não devem ir para a guerra estão profundamente enraizados em ideias sobre o que significa ser mulher e sobre o que significa ser homem. Tais argumentos estendem-se desde ideias culturais e tabus em torno da família, da maternidade, da gravidez e da menstruação até questões banais sobre dispor de instalações físicas para as mulheres-soldadoMuitos destes argumentos são familiares a estudantes da história das mulheres. Por diversas vezes, defensores do statu quo usaram preocupações semelhantes para argumentar contra educar mulheres, contratar mulheres ou promover mulheres. Na década de 1860, médicos do departamento de saúde do exército norte-americano usaram as mesmas ideias gerais contra a utilização de enfermeiras na Guerra Civil. Na década de 1980, a polícia e os bombeiros apresentaram justificações semelhantes para não integrarem mulheres agentes da polícia em patrulhas e para não contratarem bombeiras e técnicas de emergência médica.
A força e a continuidade desses argumentos apontam para uma sensação de desconforto social que ultrapassa os argumentos específicos apresentados por opositores às mulheres em combate, aquilo que Elaine Donnelly, fundadora do Center for Military Readiness, descreve como "dissonância cultural", relacionada com a ideia de mulheres nas Forças Armadas. Durante a maior parte da história humana, as imagens dominantes da guerra, e consequentemente da paz, foram baseadas no género. A guerra é considerada uma coisa de homens, posição ilustrada pela ativista e poetisa Grace Paley:
Devo dizer que a guerra é feita por homens. É uma coisa deles, é o mundo deles, e eles são terrivelmente lesados por ela. Sofrem terrivelmente nela, mas ela é feita por homens. Como chegam ao ponto de viver desta maneira? Eu demorei anos a perceber. Porque quando era pequena, era um rapaz, como muitas meninas que gostam de conhecer coisas e que querem estar onde existe ação, que é num canto qualquer onde param os rapazes. E eu percebi isto muito bem, porque era o que realmente me interessava. Estava ansiosa por continuar a ser um rapaz para poder ir para a guerra e fazer todas as outras coisas excitantes de rapazes.
Se os homens são vistos como guerreiros, as mulheres são não guerreiros.
Na sua aceção mais positiva, o papel de «não guerreiro» é enquadrado em termos de maternidade, potencial e factual. As mulheres são consideradas um recurso demasiado precioso para se colocar em perigo, como expôs o correspondente de guerra norte-americano William G. Shepherd num artigo sobre os batalhões russos de mulheres-soldado na edição de março de 1918 da Delineator. "As mulheres têm algo que os homens não têm", explicou ele através do seu intérprete à jovem mulher-soldado que estava a entrevistar.
"Elas têm a maternidade potencial, e, se matarmos isso, matamos a raça inteira." Ao mesmo tempo, as mulheres são vistas como pacifistas natas, precisamente porque são mães (posição que é historicamente dúbia). No debate moderno, a ideia da mãe como não guerreira é muitas vezes disfarçada em termos aparentemente práticos: o que acontece aos filhos quando uma mãe é mobilizada? Pior, o que acontece aos filhos se ambos os pais forem mobilizados? O serviço de elevados números de mulheres jovens nas Forças Armadas teria um efeito adverso na taxa de natalidade de um país? Ideias deste género levam à conclusão de que, mesmo que as mulheres sejam capazes de combater, permitir-lhes que o façam poderá não ser do interesse geral da sociedade.
A imagem das mulheres como não guerreiras não implica que as mulheres não se envolvam na guerra. A alegação de Keegan de que as mulheres não combatem está envolta numa lista de modos em que as mulheres estiveram envolvidas na guerra: "As mulheres seguiam o tambor, cuidavam dos feridos, tratavam do campo e reuniam as multidões enquanto o homem de família seguia o seu líder e até escavavam trincheiras para os homens se defenderem e trabalhavam em oficinas para lhes enviar armas." O historiador e teórico militar Martin van Creveld defendeu a mesma tese em termos mais sombrios quando descreveu os papéis não guerreiros que "as mulheres desempenharam na guerra, nomeadamente como suas causas, objetos e vítimas".
Van Creveld deixa explícita a ideia subjacente àquilo que eu entendo como o "argumento saco para cadáveres": os opositores à ideia de as mulheres combaterem invocam muitas vezes a imagem de uma mãe ou de uma filha a chegar a casa num saco para cadáveres, como se esse fosse um argumento contra a utilização de mulheres nos combates por mérito próprio e como se a morte de uma mãe em combate fosse inerentemente mais horrível do que a morte de um pai. Do outro lado da barricada, a historiadora Linda Grant De Pauw sugere que o problema não é o facto de ser uma mulher dentro do saco para cadáveres: "O horror de mulheres em sacos para cadáveres não é o horror de uma mulher morta. É o facto de a mulher ter sido uma guerreira, de que não é uma vítima. A cultura americana não quer aceitar que as mulheres podem ser ao mesmo tempo guerreiras e mães. […] Aceitar as mulheres como guerreiras significa desafiar o patriarcado ao seu nível mais fundamental."
Visão
Nenhum comentário:
Postar um comentário