Lembrei-me hoje dessa estátua, desse lugar, desse ominoso poste de ignomínia, lendo nos jornais um telegrama onde se conta que as autoridades portuguesas de Angola estão decapitando os rebeldes que apanham e expondo em postes as cabeças degoladas, para escarmento do insurretos. Acrescenta o despacho que tal medida visa atingir a crença supersticiosa dos negros, segundo a qual um corpo sem cabeça não poderá ter descanso depois da morte.
Para que comentar a notícia? Creio que basta repeti-la em todo o seu medieval horror. Breve se completarão 170 anos que os ministros da senhora dona Maria I mataram, esquartejaram, degolaram Tiradentes, expondo-lhe os pedaços do corpo mutilado ao longo da estrada que vai do Rio a Minas, e espetando a cabeça do herói no orgulhoso coração da rebelde Vila Rica. Mas depois disso houve a Revolução Francesa. Houve Napoleão e suas guerras. A ascensão e a queda do Império britânico. A formação e a liquidação do Império prussiano. A Primeira Grande Guerra. A Revolução Russa. O fascismo. O nazismo. A guerra civil na Espanha. A Segunda Guerra Mundial. A bomba atômica. Os mapas da Europa, da Ásia, da África inteiramente subvertidos e renovados. A impressionante insurreição dos povos de cor do mundo inteiro – o que talvez seja a feição principal a marcar este nosso século perante a história.
Entretanto, ao longo disso tudo, parece que a política colonial portuguesa não aprendeu nada; ainda não saiu do reinado de dona Maria I. Rebeldes? É degolá-los e lhes expor a cabeça em praça pública, numa boa estaca, para que tomem a lição e a deem aos outros!
Ontem fui ao cinema ver o excelente documentário que, sob o título de "Mein kampf", recapitula a mocidade, a ascensão e o triunfo de Adolf Hitler. E há na fita um momento onde se faz um cálculo: só por causa daquele homem, entre guerra e "pogroms", morreram mais de 22 milhões de seres humanos.
Dantes, quando eu era jovem, o espetáculo da ferocidade bestial do nazismo, além de me despertar a justa cólera que brada aos céus e pede satisfações a Deus por permitir semelhante horror sob Seus olhos, deixava-me a consoladora convicção de que, em verdade, o sangue derramado dos mártires é a sementeira dos heróis e de que, só sobre alicerces de sofrimento, se constrói a felicidade das gerações futuras. Hoje, que envelheço, talvez a cólera não seja menor, nem menor o apavorado testemunho. Apenas me vai faltando a fé na veracidade daqueles slogans. Já não confio muito na sementeira de heróis, na colheita de liberdades e compensações como herança do sangue dos mártires. Antes me dá um dó terrível, justamente pelos mártires, coitadinhos, pelo seu sacrifício, pelos seus sofrimentos – tão fúteis, Deus que me perdoe, tão perdidos! E por que só pagarem aqueles, justamente aqueles?
Homens que viveram pelo ferro e pelo fogo, morram pelo ferro e pelo fogo, como Trujillo, como Mussolini, como Hitler, e como deveriam ainda morrer alguns. Mas, por que também os inocentes, os que não tinham nada com Hitler nem com os negócios de guerra, os que não disputam o petróleo nem o espaço vital, os que não inventam bombas nem projéteis teleguiados. Os meninos judeus de cara escaveirada e olhos arregalados diante das câmaras de morte; aquela velha avópisoteada na rua, chorando e morrendo; o homem de sobretudo esfarrapado que tenta segurar com as mãos nuas a metralhadora do guarda SS.
E quem marcou, entre os negros rebeldes de Angola, os que teriam a sua cabeça cortada, espetada num poste? E, acima de tudo, quem será o cristão batizado que degola homens e os priva de sua esperança de salvação, só para sustentar alguns meses mais o poder nas mãos trêmulas de um velho? E por falar nesse velho – o que me surpreende é ele, que reza e bate nos peitos, não ter medo desse sangue negro que derrama assim na África, friamente, calculadamente, hitlerianamente. Ele há de dizer que desde que o mundo é mundo Portugal guerreia em terras d´África. Será. Mas com uma diferença: antes, com dom Sebastião, com todos os mais, Portugal lutava em África, matando e morrendo. Morrendo! Agora apenas mata, e de longe, em segurança. Dantes era guerreiro; hoje está apenas querendo ser carrasco.
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