sábado, 16 de maio de 2020

O som que agora vem da rua

Com a mudança do mundo, mudam os problemas também. Parece óbvio, mas, na verdade, fiquei bem impressionado com uma coisa logo assim que voltei de São Paulo pro Rio. Apesar de ter sido avisado por amigos sobre como as ruas andavam cheias em seus respectivos bairros, ver acontecer é bem diferente.

Cheguei em casa num domingo. Uma agitação enorme na rua, muito mais vida do que tinha me acostumado no Centro de São Paulo. Churrasco rolando nas lajes, as crianças jogando bola. Aos poucos, vi se transformar minha relação com o som. A música me incomodava de um jeito novo. E cada dia isso fica mais forte.

Cria do subúrbio, a mudança pro Vidigal foi grande também com a relação de espaço. Se em Bangu a casa da maioria das pessoas da minha rua tinha quintais enormes, árvores de frutas, às vezes, um jardim, um chiqueiro ou galinheiro. No Vidigal, tudo era mais apertado. Eu podia ouvir as conversas da minha rua deitado no sofá, o som do vizinho passava pela minha casa antes de avançar até a próxima. Aprendi a usar fones de ouvidos pra ler. Acostumei a dormir com o chão tremendo, numa casa que morei bem ao lado de um baile funk. Acordar com a igreja e o bar do lado, numa disputa pra ver quem alcança mais gente morro adentro.


Nunca fui de ter raiva do barulho. Até porque não existia nada que pudesse fazer a respeito. Além disso, eu não sei, o barulho da rua, de alguma forma, sempre me fascinou. A quantidade de repertórios possíveis, os sotaques, o brega, o funk, o pagode, Roberto Carlos, Racionais MC’s e Kleber Lucas, tudo numa harmonia caótica, que preenche o espaço com ondas sonoras, emoções, sonhos e desejos. O barulho das obras. Tudo sempre em construção. As provocações da pipa e do futebol. Tudo isso sempre me deu a sensação de vida que acontece, porque precisa acontecer. E quanto a isso, nunca me senti no direito de me opor.

Nas conversas com outras pessoas, também preocupadas com a situação no morro, tento não julgar aqueles que enchem as ruas. Tenho consciência de que vivo numa casa confortável, onde não tenho problemas com água nem luz elétrica, sem filhos ou netos. Não posso adivinhar como poderia enfrentar uma quarentena em outro momento da vida.

Realmente imperdoável é a postura de certos políticos e empresários que, liderados pelo presidente da República, lutam pelo fim do isolamento social, única medida realmente eficaz pra contenção do vírus. É criminosa a narrativa criada por essas pessoas, que induz parte da população a acreditar que o maior problema seja a quarentena, e não o próprio vírus. Dizem isso em jornais, na internet, bem do alto de suas torres, com a certeza de que a ajuda médica não demora mais do que 20 minutos pra chegar, bem isolados do mundo, como já estavam muito antes de qualquer pandemia.

O que será das próximas semanas é impossível prever, mas a perspectiva é a pior possível. Quando penso no tanto de gente conhecida, entre amigos e familiares que já foram contaminados, alguns ainda em recuperação, outros que sucumbiram à doença, vejo diretamente o cerco se fechar. Dessa forma, o som que vem da rua, que já me inspirou tanto nessa vida, agora traz a horrível sensação de que posso ouvir a morte chegar.

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