Pois essa aparência se dissolveu de vez. Vemo-nos agora, como sugere Fernando Henrique Cardoso, em meio a fios desencapados cujo contato acidental pode desencadear curtos-circuitos de proporções imprevistas, passando transversalmente por classes e camadas sociais, ignorando ou redefinindo interesses materiais brutos, acirrando demandas de reconhecimento ou explorando ressentimentos difusos. Um conhecedor das revoluções do século 20 poderia mencionar, a propósito, a centelha – a iskra, não por acaso o título de um jornal operário russo – que faria incendiar todo o edifício da ordem, mas o que falta agora, irremediavelmente, é o agente político – o partido – que compreende a si mesmo como capaz de dominar todo o processo e encaminhá-lo para o fim previamente disposto.
Na falta desse demiurgo – o que não é de lamentar –, requerem-se doses adicionais de cautela e comedimento, atenção aos riscos que assediam nossas sociedades e afeição inabalável às formas da democracia. Já é alguma coisa que tenha desaparecido do horizonte, a não ser no caso de seitas francamente minoritárias, o apelo revolucionário que, estivéssemos nos anos 1960, teria imposto o recurso às armas e a militarização da política – ou, na verdade, a anulação desta última da pior forma possível. Cuba, o símbolo daquela época, hoje é parte do problema, não hipótese de solução. A manutenção do autoritarismo na antiga ilha rebelde chega a ser funcional para a extrema direita da região, unida, como se viu em recente voto nas Nações Unidas, na estratégia infame do bloqueio, que enrijece o regime, garante-lhe algum consenso passivo e, acima de tudo, castiga cruelmente o povo cubano.
No mundo em rede, a centelha pode vir de qualquer parte, até mesmo de Hong Kong, e nascer de fatos rotineiros, como o aumento no bilhete de metrôs. Foi o que vimos em junho de 2013, sem, no entanto, apreender os sinais inquietantes emitidos sobre o descolamento entre política e cidadãos, e é o que estamos vendo por estas semanas no Chile, ainda há pouco tido como “oásis” num continente campeão de injustiças e desigualdades. Mera miopia ter visto só “direita” nas ruas brasileiras de 2013, assim como miopia total é ver “subversão de esquerda” no Chile de agora, tal como interessadamente o faz quem sonha com a reedição de atos institucionais ou com o advento de uma democracia plebiscitária em torno do “homem forte”.
A sedução do homem providencial, aliás, percorre a política latino-americana de fio a pavio, como praga daninha. Os presidentes ou ditadores “eternos” pulam da História diretamente para as páginas do realismo fantástico – e vice-versa. E que a praga não está restrita aos caudilhos caricatamente reacionários comprova-o a safra de reeleições ilimitadas protagonizada pelos recentes chefes bolivarianos, como Chávez, Maduro e Morales.
Sob aspectos essenciais o Chile se afasta desse padrão e precisamente por isso a grande crise atual da sua democracia nos inquieta de modo agudo. Trata-se de uma realidade a desafiar automatismos pró-governo, por parte da extrema direita brasileira, ou pró-oposição, por parte da esquerda populista. O Chile, como se sabe, conseguiu não só ter números macroeconômicos consistentes, como também, nas duas décadas que o separam do pinochetismo, reduziu a pobreza e passou a ostentar bons resultados sociais por qualquer índice que se adote, sempre tendo em conta o contexto latino-americano. Mas é indiscutível que fundamentos do pinochetismo persistem, como o atesta a previdência individualizada, que é antes índice de uma sociedade de mercado que de uma economia de mercado. E sociedades assim, em que escasseiam bens públicos, como, entre outros, a proteção à velhice, são um terreno propício para centelhas e curtos-circuitos.
A esquerda brasileira oficial, contudo, treinada historicamente no confronto por conta do corporativismo radicalizado, não deveria deter-se nesta primeira constatação, sob pena de perder o essencial. Num país de partidos e tradições longamente enraizadas, a longa noite pinochetista seria superada de modo gradual, ainda nos anos 1990, com recursos puramente políticos. Democratas-cristãos e socialistas, ao convergirem num projeto comum, o da Concertación, realizaram o que o ex-presidente Ricardo Lagos recentemente chamou de “épica da sua geração”: com meios ínfimos diante do poder do ditador, a política democrática trouxe de volta o Chile para o lugar que lhe é próprio num continente martirizado como nuestra América.
Para desconsolo até da direita chilena que atua nos marcos legais, é sabido que nossos governantes, sem dúvida eleitos legitimamente, contam-se entre os admiradores confessos do déspota, embora, sob a Constituição de 1988, estejamos distantes de qualquer pinochetismo ou coisa parecida. Mesmo assim, uma estratégia de choque frontal alimentaria tensões, cindiria ainda mais o tecido social e abriria espaço para todo tipo de curto-circuito. O caminho da concertação aponta em outro sentido, exigindo a autocontenção dos atores oposicionistas, mas não é certo que tomemos rapidamente esta segunda via para escrever a épica que precisa ser escrita.
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