quinta-feira, 29 de outubro de 2020

As filas da fome percorrem Nova York

Em meados de março, quando a pandemia do novo coronavírus avançava pelos Estados Unidos, muitos fazendeiros no estado de Nova York foram forçados a se desfazer de sua produção após o fechamento das lojas e restaurantes que abasteciam antes da quarentena. Ao mesmo tempo, os trabalhadores desses estabelecimentos perderam sua renda e começaram a recorrer aos bancos alimentares para sobreviver.

Para remediar o desperdício e a fome — muitas vezes as duas faces da mesma pobreza — a senadora estadual de Nova York Jessica Ramos planejou um circuito de abastecimento, sem intermediários, para alimentar milhares de residentes do Queens, seu distrito — um dos mais atingidos pela Covid-19 —, com a distribuição gratuita de cerca de 16 mil quilos de alimentos por semana.

Os agricultores cobrem os custos da produção e recebem um pequeno lucro, enquanto os vizinhos podem voltar a encher a despensa. Na entrada do espaço onde a distribuição é feita, Ramos conta que há também uma geladeira “para gente do bairro pegar a comida ou, para quem puder, deixar um pouco lá".


Cerca de 1,5 milhão de nova-iorquinos, em uma cidade de quase nove milhões, dependem hoje da distribuição de comida para sobreviver. É a nova pobreza causada pela crise do coronvaírus, que aumentou ainda mais as filas já conhecidas para conseguir alimentos, mas que, em algumas áreas, não tinha tamanha proporção.

— Eu ando muito pelo meu bairro e todos os dias encontro dezenas de novos moradores de rua, a situação é alarmante — explica Ramos, nome novo no Partido Democrata e que alerta para uma emergência “rumo a um inverno muito rigoroso”, às vésperas de uma eleição em que, nos programas econômicos dos candidatos, entre a ostentação pré-pandêmica de Trump e o brinde de Biden à classe média, parece não haver espaço para novas párias.

Em sete meses, desde o início da crise sanitária, os bancos de alimentos da cidade receberam 12 milhões de visitas, 36% a mais que no mesmo período do ano passado, segundo a ONG City Harvest. A demanda por comida de graça é tanta que foi criado um aplicativo online para pesquisar despensas comunitárias por regiões. Segundo um estudo da Universidade de Columbia, oito milhões de americanos engrossaram as fileiras da pobreza no país desde maio, quando acabou o plano de assistência, como um cheque de US$ 1.200 (cerca de R$ 6 mil) e um pagamento semanal extra de US$ 600 (R$ 3 mil) para desempregados.

— Não estamos falando de moradores de rua, mas de pessoas que tinham dois, três empregos precários, e hoje no melhor dos casos são vendedores ambulantes e com isso conseguem sustentar a família; também de muitas pessoas que, por falta de documentos, não podem solicitar o auxílio — explica Ramos, que continua — Mas embora a pandemia seja uma novidade, o déficit estrutural não é e foi ignorado por muitos anos, e que a Covid-19 só ajudou a evidenciar. A ajuda dos governos é muito limitada, na verdade, os fundos federais para bancos de alimentos foram cortados, o que fortaleceu ainda mais as redes de apoio comunitário. Por exemplo, a geladeira que instalamos na entrada do escritório, disponível 24 horas por dia a semana toda, e que se esvazia imediatamente.

A favor de dar "uma solução política a um problema estrutural", Ramos apresentou um projeto de lei para taxar a fortuna dos bilionários.

— Em sete meses, os habitantes mais ricos de Nova York viram sua renda aumentar em US$ 77 bilhões (R$ 385 bilhões). Pois bem, o imposto que proponho [para combater a crise] seria de apenas um terço disso — explica.

Em junho de 2019, Ramos conseguiu que o Senado estadual de Nova York aprovasse uma lei de comércio justo para 80 mil a 100 mil trabalhadores agrícolas do estado, que pela primeira vez desfrutam de direitos como seguro-desemprego. Graças a essa iniciativa, a senadora os tem ao seu lado para combater a fome.

Além de campanhas específicas como a de Ramos, a maior parte da distribuição de ajuda fica a cargo de organizações humanitárias ou de caridade, muitas delas vinculadas a ordens religiosas. É por isso que os cartazes coloridos da despensa comunitária Love Wins, em Jackson Heights no Queens, sugerem a princípio a presença de uma congregação evangélica, embora a bandeira do arco-íris rapidamente mostre que não é verdade.

Todas as sextas-feiras, cerca de trinta voluntários — alguns deles, beneficiários da ajuda — transformam um bar LGTBI forçado a fechar devido à pandemia em uma despensa para os vizinhos, que formam duas filas (uma exclusiva para idosos) horas antes do início da entrega. Graças aos suprimentos da ONG do chef José Andrés, World Central Kitchen e, desde a semana passada, do banco de alimentos da prefeitura, alimentam milhares de pessoas desde abril.

Carmita Sancho, equatoriana, espera com suas duas filhas pequenas pela comida.

— Meu marido está desempregado há mais de seis meses, e o pouco que economizamos foi para o aluguel de nossa casa, de US$ 1.750 (cerca de R$ 8.750). Tenho mais dois filhos no Equador e não posso mais mandar dinheiro para eles, minha mãe cuida deles, mas ela também depende do que eu mando, então não estamos passando aperto só aqui. Cuidava dos filhos de alguns europeus, mas com o vírus eles foram embora logo depois. Meu marido trabalhava na construção e agora o chamam para trabalhar no máximo cinco dias por mês, com isso não podemos comer — conta Sancho, numa curva da fila de distribuição, que dá a volta no quarteirão, cercada por dezenas de vizinhos asiáticos mais esquivos.

Algumas consequências profundas da pandemia podem ser deduzidas da história de Sancho: o fechamento da torneira das remessas, que manteve viva muitas economias nos países de origem; a incapacidade de pagar as contas e o aluguel — numa cidade em que os preços imobiliários chegam às nuvens —; o iminente horizonte da pobreza energética diante de milhões de norte-americanos enquanto a pandemia se agrava.

— De que adianta terem suspendido os despejos devido à situação de emergência se o proprietário pode cortar a luz ou a água por falta de pagamento, forçando o inquilino a sair? — pergunta Daniel Puerto, um dos organizadores da Love Wins. — O problema era, e é, a falta de moradias populares, a falta de acesso à saúde, a ausência de uma abordagem abrangente das necessidades dos grupos que já estavam à margem do sistema.

Em uma rua que já foi comercial no Lower East Side de Manhattan, que teve um fechamento massivo de suas lojas, três homens negros idosos discutem do lado de fora do velho casarão Bowery, uma missão cristã fundada em 1879 — a antítese em espírito e doutrina da Love Wins — se lhes convêm se cadastrarem no albergue para terem acesso à roupa usada. O outono ganhou de repente um aspecto azedo e a chuva revela a degradação dos prédios, carentes, quase dickensianos na crueza do tijolo.

— Somos velhos conhecidos aí dentro [na missão], eles nos dão comida há muito tempo, mas agora com a pandemia e o frio não poderemos seguir em frente, nem sequer com ajuda — diz um dos homens, enquanto encolhe os ombros, talvez de frio.

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