quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Missionários aprendem até a pilotar avião para evangelizar índios na Amazônia

Cursos de piloto de avião, antropologia e linguística, vivências em réplicas de aldeias e peças de teatro estão entre as estratégias adotadas por ONGs missionárias brasileiras e estrangeiras para atrair voluntários ao esforço de evangelizar indígenas na Amazônia.

Lideranças indígenas contrárias às iniciativas temem que elas venham a ganhar fôlego no governo de Jair Bolsonaro, após a indicação da pastora evangélica Damares Alves para o ministério encarregado pela política indigenista.

Dinaman Tuxá, coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), diz que "com a indicação da ministra Damares, o novo governo sinaliza que está claramente articulado com missionários evangélicos numa estratégia declarada de integrar o indígena à sociedade - a mesma estratégia da ditadura militar."

Segundo a Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB), entidade que reúne 78 organizações missionárias, há no mundo "dois mil povos sem o Evangelho, entre os quais 89 estão no Brasil".

A associação tem um Departamento de Assuntos Indígenas, cuja missão é "atender demandas sociopolíticas oriundas das agências filiadas junto aos órgãos governamentais", como obter autorizações para atuar em terras indígenas e influenciar congressistas em debates sobre o trabalho missionário em aldeias.

Asas de Socorro oferece cursos para formar mecânicos e
pilotos dedicados "à causa do evangelismo nas aldeias

Uma das entidades filiadas é a Asas de Socorro, criada por missionários americanos em 1955 e que mantém em Anápolis (GO) uma escola para formar pilotos e mecânicos dedicados "à causa do evangelismo nas aldeias, comunidades ribeirinhas e povos tradicionais, habitantes em regiões isoladas ou em situação de risco na Amazônia".

A formação completa dura quatro anos e custa cerca de R$ 1.500 ao mês, valor subsidiado pela organização, e garante ao aluno licenças de piloto comercial, voo por instrumentos e instrutor de voo.

Em cursos de piloto anunciados na internet, as mensalidades chegam a R$ 4.200/mês.

A Asas de Socorro tem bases em Roraima, Rondônia e no Amazonas. Um instrutor disse à BBC News Brasil que, após a conclusão do curso, espera-se que o voluntário passe a prover apoio logístico a missionários que já estejam em aldeias.

Os pilotos também podem fazer cursos para participar da evangelização direta dos grupos, além de atuar em emergências, resgatando missionários ou indígenas doentes. As operações são financiadas por doadores individuais e igrejas parceiras da Asas de Socorro.
'Religiões tradicionais e espiritismo'

Com sede nos EUA, a agência missionária Association of Baptists for World Evangelism (Associação Batista para o Evangelismo Global) também emprega aviadores missionários no Brasil.

Em seu site a organização conclama voluntários a servir no país, descrito como um local onde "religiões tradicionais e o espiritismo ainda abarcam parte da população".

Muitas organizações filiadas à AMTB têm sede no exterior - caso da WEC (Worldwide Evangelisation for Christ), criada por um britânico em 1913 e que diz ter como meta "envolver-se com 33 novos povos" em 2018 em parceria com as igrejas brasileiras.

Algumas organizações se especializam no treinamento antropológico e linguístico dos missionários.
Folheto com conteúdo religioso na língua Xavante distribuído
por missionários Testemunhas de Jeová em aldeias no Mato Grosso
"Nunca houve uma época em que os missionários fossem tão bem preparados como agora", diz à BBC News Brasil o presidente da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) e vice-presidente da Associação das Missões Transculturais Brasileiras (AMTB), Edward Luz.

Luz diz que mais de 1.700 missionários já foram formados pelo Instituto Bíblico Peniel, braço educacional da MNTB, fundada em 1953 e hoje presente em 50 etnias brasileiras. O curso dura quatro anos e meio e tem aulas de teologia, antropologia e linguística

A formação busca preparar o aluno para iniciar o trabalho missionário do zero em qualquer etnia, falante de qualquer língua, em qualquer lugar do mundo. O missionário tem acesso a técnicas para aprender um idioma qualquer por conta própria, transliterá-lo para nosso alfabeto e traduzir a bíblia para a língua aprendida.

O objetivo da MNTB é estimular as comunidades a criar suas próprias igrejas evangélicas. Entre os povos que não falam português, os cultos são sempre celebrados na língua local.

Foi essa a estratégia que eles aplicaram, por exemplo, entre os Wari' (também conhecidos como Pacaas Nova), grupo contatado pela MNTB em 1956, em Rondônia. "A igreja deles é totalmente Pacaa Nova. Eu nunca seria pastor numa aldeia indígena", diz Luz.

Durante o curso de formação, os candidatos a missionários da MNTB assistem à peça teatral Clamor de Batum - que, segundo a organização, reproduz um episódio real ocorrido na Papua Nova Guiné, país na Oceania.

Na peça, um grupo de jovens missionários visita pela primeira vez uma aldeia onde outros colegas já atuavam. "Olha só essa nativa. Ela é muito bonita, e eu aqui pensando que eles iam ser muito feinhos", diz uma das visitantes. "É, eles são seres humanos como nós, e Jesus também ora por eles", replica um missionário mais velho.

Na trama, um grupo de aborígenes implora para que os missionários se desloquem para outra aldeia para catequizar seus parentes e livrá-los do inferno após a morte. Diante da negativa dos religiosos, que alegam não serem numerosos o suficiente para a tarefa, a peça se encerra com uma choradeira coletiva.

A audiência é, assim, estimulada a unir-se ao esforço evangelizador para impedir que tantos povos não cristianizados tenham destino semelhante ao dos aborígenes papuásios.

Encenações também estão entre as estratégias da organização americana New Tribes Mission para angariar missionários.

A entidade montou na Pensilvânia uma réplica de uma aldeia Yanomami, povo que habita o Brasil e a Venezuela. Nela, voluntários interagem com atores que se passam por membros do grupo indígena.

A experiência é oferecida durante um retiro de fim de semana batizado de Wayumi - termo que, segundo os organizadores, é adotado pelos Yanomami para se referir a viagens curtas.

Segundo a organização, o retiro "dará a você e a seu grupo uma visão panorâmica de povos ainda não contatados pelo mundo. Ela abrirá seus olhos para o que deve ser feito para acançar esses grupos".
103 etnias sem missionários

O esforço para recrutar voluntários busca preencher lacunas na evangelização de índios na Amazônia.

Em 2017, numa palestra na Faculdade Teológica Sul Americana, em Londrina (PR), o pastor Ronaldo Lidório - um dos principais nomes da atividade missionária no Brasil - disse que indígenas são o grupo populacional brasileiro com maior carência de missionários, seguidos por ribeirinhos, quilombolas, ciganos e sertanejos.

Segundo Lidório, 103 etnias brasileiras não têm a presença de qualquer missionário.

"Quarenta delas estão abertas para o Evangelho, mas a realidade é que não há missionários", afirmou.

Não há dados oficiais sobre o avanço de igrejas evangélicas entre povos indígenas brasileiros. Em alguns povos, porém - caso dos Terena, em Mato Grosso do Sul, e dos Baniwa, no Amazonas - a maioria dos integrantes se declara evangélica.

Em algumas regiões, como no Alto Rio Negro, há forte presença católica entre os indígenas por influência de missões instaladas nos últimos séculos. Hoje, porém, a Igreja Católica diz ter abandonado a evangelização de indígenas e valorizar as crenças ancestrais dos grupos.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão ligado à Igreja Católica, diz atuar junto a mais de 180 povos indígenas brasileiros respeitando o protagonismo dos grupos e "dentro de uma perspectiva mais ampla de uma sociedade democrática, justa, solidária, pluriétnica e pluricultural".

Pelas regras atuais da Funai, missionários só estão absolutamente impedidos de entrar em territórios de povos indígenas isolados - restrição que vale para qualquer outro grupo de pessoas.

Para ingressar nas demais terras indígenas, eles precisam de uma autorização da Funai ou da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena).

Segundo servidores da Funai que não quiseram ser identificados, muitos missionários obtêm autorizações com a justificativa de prestar serviços à comunidade, como assistência em saúde.

De acordo com o Portal da Transparência, a entidade filantrópica que mais recebeu recursos da União nesta década foi uma ONG presbiteriana que atua junto a indígenas - a Missão Evangélica Caiuá, que mantém um convênio com o Ministério da Saúde para administrar 18 dos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas. No período, a ONG - que em seu site diz trabalhar "a serviço do índio para a Glória de Deus" - recebeu cerca de R$ 2 bilhões em verbas públicas.

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