sexta-feira, 26 de julho de 2019

Imagina se fossem os russos

O ministro Sergio Moro foi ontem ao Twitter para afirmar que ninguém sofreu um hack por falta de cautela. “Não havia sistema de proteção hábil”, ele escreveu. Havia, sim. Autenticação em duas etapas, ou, na sigla em inglês, 2FA. É chatinho, mas não é difícil. O episódio da prisão dos quatro suspeitos de Araraquara traz à luz duas questões fundamentais que põem em risco a democracia brasileira. Uma é a inacreditável ingenuidade digital das autoridades públicas. A outra é que a paranoia, a mentira, a desinformação se impuseram de vez no debate público.

Se o Twitter é a rede de escolha para fluxo de informação do atual governo, é por ele que devemos fluir. No momento em que o site The Intercept Brasil começou a publicar as conversas vazadas da Lava Jato, esquerda e direita construíram cada qual o seu mito de origem. Ambos falsos no âmago.


A versão da esquerda, amplamente estimulada pelos jornalistas do Intercept, é de que quem levantasse a hipótese de que um hacker estaria fazendo o jogo dos vilões - compreenda-se, no caso, procuradores e o então juiz Moro. Naquela cegueira coletiva que as redes constroem, na qual um convence o outro da mesma história que nenhum fato sustenta, decidiu-se que a fonte deveria ser o que os americanos chamam de "whistleblower". Um funcionário, talvez do MP de Curitiba, que angustiado perante malfeitos fez-se herói, copiou os dados, e os encaminhou para os jornalistas.

Os fatos sugeriam o contrário. Um mês antes da primeira reportagem, o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot já havia falado publicamente de ter sido vítima de um hacker, e daí vários outros casos pipocaram. Mais de um jornalista encontrou, tanto na Polícia Federal quanto no MP, histórias várias de violação por hackers. A convicção na esquerda de que não há hacker se tornou tão forte que, mesmo com a confissão de um deles, ainda assim tudo é uma trama de Moro e de sua PF. Uma conspiração, pois. Aquilo que a gente chama teoria conspiratória.

A versão da direita é ainda mais rocambolesca. Envolve pagamentos em bitcoins, poderosos hackers russos, o intermédio do americano Edward Snowden, e a compra do mandato de um deputado federal. São tantas as partes extraordinárias nesta história que surpreende alguém acreditar. No Twitter, massas acreditam.

Tanto a Polícia Federal quanto os técnicos que indiretamente se envolveram na investigação chegaram a cogitar a possibilidade de o hacker ser russo no início da investigação. A Rússia tem feito ataques cibernéticos por toda parte do mundo e as constantes ligações recebidas de madrugada pelas vítimas poderiam sugerir seu fuso horário. Mas faz mais de um mês que a investigação já havia detectado que o método tinha sido mais simples — este de caller ID spoofing. É mais simples do que clonagem, o celular apenas finge ter o número do hackeado. Não é um equipamento barato o que permite este mascaramento — mas, ora, mais de uma empresa no Brasil oferece este serviço por preços módicos.

Se no início pareceram hackers sofisticados, conforme foi-se avançando percebeu-se que, ora, eram hackers de Araraquara. Tiveram acesso ao Telegram do ministro da Justiça, dos presidentes da Câmara e do Senado, de ministros do Supremo, de pelo menos um ex-procurador-geral da República, delegados da Polícia Federal.

Enquanto aquela parte da população interessada em discutir política cria para si duas realidades paralelas que nunca se encontram, um estelionatário de terceira do interior paulista toma de assalto a comunicação da República. Vamos mal.

Imagina se fossem russos.

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