segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Déficits de competência, de governo e de civilidade

Déficit de governo, déficit de competência, déficit diplomático e déficit de civilidade na administração federal são hoje muito mais graves que o enorme buraco nas contas públicas, também conhecido como déficit fiscal. O presidente Jair Bolsonaro, seus acólitos e seus milicianos digitais acusam os meios de comunicação de só se ocuparem de assuntos menores e de intrigas, ignorando os dados positivos. Mas fogo na Amazônia, elogio à ditadura chilena, apologia da tortura e grosserias contra a mulher do presidente da França foram grandes temas postos em pauta, sem exceção, pela cúpula do governo. Não são, de fato, assuntos menores, porque resultam de palavras e ações de figuras poderosas na República. Combinam perfeitamente, pode-se acrescentar, com a persistente crise da indústria (queda de 0,3% em julho) e com a piora da economia neste governo, e também esses fatos têm sido noticiados. Mas o chefe de governo sempre consegue sobressair por suas façanhas.


Ele e seu ministro do Meio Ambiente são conhecidos dentro e fora do Brasil pelos ataques a organismos de proteção ambiental. O presidente notabilizou-se pela demissão do respeitado diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um escândalo internacional. Depois, ganhou destaque ao descrever a “cadeira de direitos humanos da ONU” como ocupada por “gente que não tem o que fazer”. Nessa ocasião, acusou a comissária de Direitos Humanos, a ex-presidente chilena Michelle Bachelet, de defender direitos de vagabundos e elogiou os torturadores e assassinos de seu pai.


O presidente Bolsonaro já havia chamado de herói nacional o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra e ofendido a memória de um estudante morto na década de 1970 pela ditadura brasileira, o pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Há quem acuse a imprensa de dar muita importância a essas palavras e atitudes do presidente Jair Bolsonaro, como se fossem apenas manifestações de maus modos. Ele é assim mesmo, dizem os mais tolerantes, como se descrevessem deslizes de pouca importância.

Serão mesmo atitudes e atos irrelevantes, quando envolvem o elogio de ditaduras, o aplauso a homicídios cometidos por agentes públicos e a exaltação de torturadores como heróis? Serão palavras e atos descartáveis, quando produzem desastres diplomáticos, expõem o Brasil ao risco de se tornar um pária internacional e ameaçam exportações do agronegócio?

Essas exportações são o maior pilar do comércio exterior brasileiro. Garantem o superávit na balança de mercadorias e são essenciais para a segurança econômica externa. Qualquer presidente com alguma competência conheceria todos esses fatos, mesmo sendo pouco informado sobre economia. Crises cambiais são desastres dolorosos, dificilmente superáveis sem muito sacrifício, e nenhum governante sério desconhece esse fato.

Mesmo com exportações em queda, o Brasil ainda é superavitário no comércio de bens. Suas transações correntes têm um déficit administrável e o País dispõe de cerca de US$ 380 bilhões em reservas brutas. Qualquer ato ou palavra com potencial para tornar o País mais vulnerável a choques externos é uma demonstração, no mínimo, de ignorância ou de irresponsabilidade.

Políticos europeus já insinuaram a conveniência de impedir ou dificultar a importação de produtos brasileiros, como carnes e soja, enquanto se esperam garantias de proteção da Amazônia. Importações de couro já foram suspensas, por decisão privada, como reação (obviamente propagandística) à destruição de florestas.

Não basta falar de má-fé política ou empresarial, nem do conhecido protecionismo europeu. O verdadeiro e competitivo agronegócio brasileiro continua longe das agressões à Amazônia e é conhecido por ser poupador de terras. Mas a maior parte dos estrangeiros provavelmente ignora esses fatos e apoiará medidas contra os produtos brasileiros, em defesa da floresta e da grande fonte (outra mentira) do oxigênio consumido em todo o planeta.

Um presidente mais informado, mais prudente e mais bem assessorado na ação diplomática seria capaz de pesar todos esses dados e de cuidar dos interesses nacionais. Esses interesses envolvem, sim, a segurança das contas externas, um assunto dramaticamente importante num país obrigado a um penoso e demorado ajuste das contas públicas. Crise externa forçaria um ajuste interno muito mais doloroso, como sabe qualquer pessoa razoavelmente informada.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, sabe ou deveria saber disso. Mas, em vez de arrumar, ele estraga o cenário. Repetiu em público, na quinta-feira, a grosseria do presidente Bolsonaro a respeito da mulher do presidente francês. Talkey, o presidente é assim mesmo, uma figura grosseira, diriam os defensores do senhor Bolsonaro. Mas o ministro da Economia também tem de ser? Pior: tem de ser assim, quando também o ministro de Relações Exteriores é conhecido por prejudicar a imagem do País?

O único avanço real e importante nos ajustes, até agora, tem sido a tramitação da reforma da Previdência. Mas isso se deve principalmente a alguns parlamentares empenhados num trabalho sério, na Câmara e no Senado. Enquanto dependeu do presidente da República, o projeto quase ficou emperrado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. São fatos bem conhecidos.

Quanto à reforma tributária, o governo nem chegou a expor com clareza, até agora, a sua proposta. Tem-se falado em combinar seu mal conhecido projeto com aqueles já em discussão. Mas ninguém explicou como se poderá harmonizar a nova CPMF, defendida pelo Executivo, com as mudanças desenhadas por outros autores. Enquanto isso, a economia se arrasta, a insegurança permanece, o desemprego se mantém elevado e dezenas de milhões enfrentam sacrifícios prolongados pela inoperância econômica do governo. Tudo por culpa da imprensa?

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