sábado, 17 de agosto de 2024

Projeto que facilita acesso a armas é estelionato parlamentar

Não é novidade que o governo de Jair Bolsonaro foi de imenso retrocesso — também e sobretudo — na fiscalização e no acesso da população civil às armas de fogo. Em 2022, dois dias antes do segundo turno das eleições, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, em carta aos brasileiros, prometeu “revogar decretos e portarias que permitiram o acesso irrestrito às armas, especialmente aqueles que estão armando o crime organizado”. O revogaço começou tão logo o presidente foi empossado. Na estreia do terceiro mandato, Lula assinou decreto alterando regras de aquisição e registro de armas; em meados de 2023, outro conjunto de medidas foi apresentado pelo então ministro da Justiça, Flávio Dino, hoje no Supremo Tribunal Federal. Como resultado, a Polícia Federal (PF) reportou queda de 82% em novos cadastros de armas para defesa pessoal. Saíram de 114.044 em 2022 para 20.822 no ano passado, menor número desde 2004.

São essas iniciativas que estão sob ameaça no Congresso Nacional, por pressão — e interesse — da bancada da bala. Anteontem, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou Projeto de Decreto Legislativo que anula partes das medidas assinadas por Lula no Decreto 11.615/2023, fruto de debate com PF, Exército, Ministério Público, organizações de segurança pública, parlamentares e CACs (abreviação para caçadores, atiradores desportivos e colecionadores). O texto que vai ao plenário impõe retrocessos que nem o ex-presidente armamentista aplicou. O atual governo, minoritário no Parlamento, peca em não alertar com estardalhaço a sociedade sobre o rolo compressor que atropela uma promessa de campanha consagrada nas urnas. É um estelionato parlamentar.


Para começar, o Legislativo age para revogar a exigência de distância mínima de 1 quilômetro entre clubes de tiro e escolas. O relator do PDL 206/2024, senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO), candidato a prefeito de Goiânia, alegou que a proibição determinada pelo governo federal invadia competência municipal. Às prefeituras, disse, cabe regulamentar a localização dos estabelecimentos. Haveria, além disso, insegurança jurídica para unidades em operação, já que o decreto presidencial previa mudança de endereço num prazo de 18 meses.

A CCJ não cogitou sequer autorizar permanência de unidades existentes e restrição a novas. E desprezou o risco que representa a circulação de gente armada e acúmulo de pólvora em ambiente próximo de estudantes. Sem falar na perturbação das atividades escolares pelo som dos disparos. A preocupação é concreta. Dois anos atrás, a Prefeitura de Santo Augusto (RS) proibiu a instalação de clubes num raio de 3 quilômetros de escolas. Alunos se queixavam do barulho persistente de um clube que operava a céu aberto a apenas 230 metros de distância de uma instituição de ensino.

No tratoraço da CCJ, senadores votaram por derrubar a diferenciação de níveis entre atiradores, medida que existia antes do libera geral de Bolsonaro. A classificação estabelecia a quantidade de armas e munições que atiradores poderiam ter, com base no número de treinamentos (oito, 12 ou 20 a cada 12 meses) e competições (quatro, seis ou oito) de que participassem. Por água abaixo também foram os critérios de definição de armas colecionáveis, também existentes pré-Bolsonaro. O decreto de Lula listava características históricas e fixava em, pelo menos, 40 anos o tempo de fabricação. Mas a votação da CCJ suprimiu até os trechos que proibiam aquisição por colecionadores de armas de uso restrito das Forças Armadas e de disparo automático. Armas automáticas, para deixar claro, são aquelas que dão tiros em rajada.

Despencou do decreto presidencial a necessidade de registro na compra de armas de gás comprimido. Até Bolsonaro, armamento de pressão com calibre superior a 6mm era considerado de uso restrito, porque também pode disparar projéteis de metal, de maior potencial destrutivo. Por fim, os senadores não somente concordaram em manter com os proprietários as armas de uso restrito adquiridas na vigência da flexibilização do governo anterior, que Lula não revogou, mas também propõem retirar do decreto a proibição de uso diferente do declarado na origem. A medida abre espaço para desvios de finalidade.

O PDL iria a plenário ontem. Foi retirado da pauta a pedido do líder do governo, senador Jaques Wagner (PT-BA). O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), concordou com o adiamento, mas a votação está prevista para a próxima semana. Sem alteração, o regramento imporá, de novo, imenso retrocesso num tema que não trouxe bem algum à sociedade brasileira. Bolsonaro promoveu um derrame de armas em mãos civis. O descontrole é letal.

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