quinta-feira, 23 de maio de 2024

O rancor do populismo

Um menino de 9 anos, de origem nepalesa, foi espancado por cinco colegas, que gritavam “volta para a tua terra!”, enquanto um sexto filmava a cena.

O episódio, ocorrido numa escola de Lisboa, é mais um, entre vários, que testemunham o crescimento do racismo e da xenofobia em Portugal.

O surgimento do Chega — partido de extrema direita que nas eleições do passado mês de março conseguiu 50 lugares no parlamento português — vem legitimando e fortalecendo movimentos radicais, alguns deles assumidamente neonazis, que até há poucos anos não mobilizavam senão meia dúzia de sujeitos espiritualmente deformados.


André Ventura, o líder do Chega, começou por atacar a comunidade cigana, radicada em Portugal há centenas de anos, antes de se voltar contra os imigrantes. Ventura esforça-se por ligar a entrada de estrangeiros no país com o aumento da criminalidade. É um absurdo total, desde logo porque ao mesmo tempo que a imigração vem subindo, a criminalidade tem vindo a decrescer. Portugal continua sendo um dos países mais seguros do mundo, ocupando a sétima posição no Índice Global da Paz.

Antes de se reinventar como extremista de direita, Ventura era um plácido social-democrata, que tentou uma carreira como escritor de romances eróticos, e defendia a eutanásia, o aborto e a descriminalização das drogas leves. Na sua tese de doutoramento, criticou a discriminação das minorias — nomeadamente dos muçulmanos — e o endurecimento das leis criminais.

Em diversos outros incidentes, na cidade do Porto, grupos de homens, armados com bastões, tacos de basebol e armas de fogo, assaltaram apartamentos ocupados por imigrantes magrebinos e latino-americanos, ferindo vários com gravidade. Mais uma vez, Ventura atribuiu as agressões à irritação dos moradores contra os imigrantes, que estariam praticando assaltos. Não se preocupou em demonstrar a ligação entre as vítimas da violência racista e os supostos bandidos.

Os imigrantes, esses sim, sentem-se inseguros, pois o que vem aumentando são os crimes de racismo e de xenofobia. Existe uma ligação clara entre o acréscimo da criminalidade racista e a popularização das falas de ódio por parte de pessoas e de instituições que representam a própria democracia.

Discursos contra imigrantes, no abstrato, acabam sempre ferindo com pedras reais pessoas concretas.

Sempre houve racistas em Portugal. Simplesmente, por medo ou por vergonha, a esmagadora maioria não se atrevia a expressar publicamente os seus preconceitos.

O espancamento do menino nepalês comove e horroriza qualquer pessoa sensata. Os colegas que o agrediram estão, afinal, reproduzindo o exemplo dos pais.

A democracia portuguesa, como tantas outras em todo o mundo, deixou-se contaminar pelo insidioso rancor do populismo (vamos chamar-lhe assim). Contrariar o avanço do pensamento autoritário, com a sua cultura da mentira, da demagogia e do ódio, é um dos maiores desafios do nosso tempo. Aliás, todos os outros grandes combates que enfrentamos, incluindo os relacionados com a crise climática, dependem da preservação da democracia.

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