Há muitos nomes para designar o que está acontecendo. Chamamos “catástrofe” intencionalmente para recuperar a ideia do teatro dramático antigo que significava o momento no qual os acontecimentos da representação se voltavam contra a personagem principal. Etimologicamente significa: Kata “para baixo” e strophein “virar”, virar para baixo. Tudo isso há de ajudar a “virar”, a “dar uma virada”, esperamos. É, portanto, mais do que um desastre, uma tragédia, um acidente, uma calamidade… ainda que todas estas sejam, de alguma forma, e também, sinônimo daquela.
A questão é saber, no sentido de Bruno Latour, se o fenômeno é “acontecimento”. Para que seja, precisa levar a uma escuta profunda que transforme o fenômeno, de simples objeto externo a ser descrito funcionalmente, a ser justificado existencialmente, e leve a entender seu sentido, suas razões, motivadoras de reflexões e ações capazes de modificar a própria maneira de pensar e agir, o mais amplo e profundamente possível. Trata-se de superar a simples ocorrência, para problematizar e gerar outras formas de ser, de desejar, de julgar, de agir… e produzir uma ruptura com o modo normalizado e normalizador, gerar impossíveis, mundos totalmente diferentes, outros mundos…
Transformar ocorrências em acontecimento exige que haja reflexão, não somente reação. Sim, o momento é de socorro, de salvamento, de solidariedade, exercida de forma tão intensa e forte, mas é também de fazê-lo com o desejo de que não se precise voltar a fazer, logo, de novo, uns dias depois. Há que trabalhar a reconstrução, que não pode ser um simples retorno ao mesmo, um refazer no mesmo lugar, posto que, para um bom número de situações, seria insistir em esperar novos eventos traumáticos. Há um processo de responsabilização daqueles que agiram ou que deixaram de agir para prevenir, para proteger, e não são poucas as ausências e as faltas. Há que construir condições para a reparação das vítimas da catástrofe climática e são milhares, aqui e em tantas outras emergências climáticas pelo mundo.
Enfrentar a complexidade das exigências postas pelo acontecimento requer tomar a circunstâncias a fundo, mas não ficarmos presos elas, hão de ser transpassadas, transfluidas, trans… A travessia que se exige neste momento é mais do que simplesmente encontrar alguma margem, ainda que numa enchente, uma margem física é “salvação”. Há que se fazer a travessia para buscar novas margens, margens portadoras potenciais de novas formas de relação que denunciem o intolerável, que travem e freiem a destruição do progresso infinito e abram à criação que fecunda transformações profundas, novas relações, novas existências.
Há uma compreensão a ser construída… um acontecimento não é uma simples casualidade, por mais que o componham. Há antecedentes, há consequências, há causalidades, diretas, indiretas, há agentes, há relações… uma complexidade a ser, não somente esquadrinhada, explicada, mas particularmente, compreendida, interpretada, sentida, refletida. E para tal não se pode dispensar qualquer tipo de saber, de sabedoria, de conhecimento. Todos eles estão convidados à roda dialógica. Mas não dá para acolher a desinformação massiva, a produção de informações falsas, a disseminação de ódio. Uma emergência climática é piorada com o uso das tecnologias da informação para desinformar e para desmobilizar.
É uma catástrofe que tem uma qualidade substantiva: é “climática”. Mas, dizê-la assim, pode sugerir carregar a separação entre ser “climática” e ser “humana”, reproduzindo a cisão entre natureza e cultura, tão cara ao “antropoceno”. Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo (2020), alerta que “[…] passamos a pensar que ele [o planeta] é uma coisa e nós, outra: a terra e a humanidade”. Davi Kopenawa, em A queda do céu (2015), diz que “[os brancos] pensam que a floresta está morta e vazia, que a natureza está aí sem motivo e que é muda. Então dizem para si mesmos que podem se apoderar dela para saquear as casas, os caminhos e o alimento dos xapiri como bem quiserem!”.
A insistência em submeter, no sentido mais duro que esta palavra pode significar, a natureza à cultura, fazendo dela um “recurso” a serviço dos humanos, faz com que as águas sejam tratadas como inimigas da humanidade: deveriam ser recolhidas e enviadas para longe… sobretudo nas cidades… esta é a lógica das “drenagens”. Ao mesmo tempo, operações imensas para trazer água, de longe, do fundo, para abastecer a sede de milhões. E as águas voltam… desta vez voltaram com força! Voltaram para dizer que precisamos conviver com elas. Nos ensinam que não há humanidade sem natureza. Uma catástrofe climática é uma catástrofe humana, inclusive porque mais produto da ação humana na natureza do que o contrário… longe de que seja uma simples “vingança” da natureza. O desafio de retomar a interdependência entre o humano e o natural é a mensagem mais dura que a “enchente” deixa, além de muita lama, destruição e morte.
O quilombola Antônio Bispo dos Santos, em A terra dá, a terra quer (2023), que há pouco encantou, chama a atenção para a necessidade de entender o movimento das águas: vão e voltam. Ele lembra que “a água não reflui, ela transflui e, por transfluir, chega ao lugar de onde partiu, na circularidade”. Simbólico e exigente entender o que ele diz quando o desejo imediato é que as águas simplesmente “refluam”, se afastem, rápido, para longe…
Bispo dos Santos propõe que, assim como as águas, o movimento humano seja de “transfluência”, porque, “transfluindo somos começo, meio e começo. Porque a gente transflui, conflui e transflui. Conflui, transflui e conflui. […] Na transfluência não há volta, porque ela é circular. Ao mesmo tempo que algo vai, fica; ao mesmo tempo que fica, vai – sem se desconectar”.
As lições que podem nos ajudar a aprender do acontecimento são aquelas que transformam e, sobretudo, que mobilizam a transformações profundas e duradouras, sustentáveis, produzindo uma virada!
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