— O Estado Democrático de Direito é aquele em que o poder do Estado é limitado pelos direitos dos cidadãos. Sua finalidade é coibir abusos do aparato estatal para com os indivíduos.
Essa conceituação, roubada da internet, esquece o problema: os abusos político-jurídicos dos mandões-salvadores contra o Estado Democrático de Direito. Abusos abonados por tradicional esperteza (“agora é nossa vez!”) e por costumes consagrados no preceito:
— Aos amigos tudo; aos inimigos, a lei.
E no teorema de Oliveira Viana:
— Tenho coragem pra tudo, menos a coragem de negar o pedido de um amigo!
Desvios particularistas são simploriamente chamados de “jeitinho” porque seu objetivo é manipular a lei, não modificá-la. Sua prática reitera um conhecido paradoxo brasileiro: burlar sem romper a lei.
O “jeitinho” e o estridente e agressivo “você sabe com quem está falando?” demonstram a força dos costumes. Eles exibem a antipatia pela lei que iguala, com o costume que, no Brasil, hierarquiza e verticaliza. Quem está “em ou por cima” não pode ser “tratado” como quem está embaixo. A prática democrática esbarra na hierarquia. Tal movimento promove uma dialética de insegurança, minando a prática democrática porque, na maioria dos casos, o costume engloba a lei.
Leis têm motivos, data e nome. Max Weber as classifica como instrumentos de uma “dominação racional-burocrática”. Um estilo de dominação com assustadora autonomia porque — como uma “jaula de ferro” — ela, ao lado do mercado autorregulado, submete seus operadores. Em contraposição, hábitos e costumes sem autores ou história constituem a “dominação tradicional” ao lado da “carismática”, em que predominam o personalismo e o mítico.
A dominação legal-racional tem base na lei escrita e numa presumida racionalidade. Leis são promulgadas, costumes são rotinizados e vividos. Leis podem ter propósito e autoria. Costumes são coletivos e anônimos. São as tais coisas do povo, como faz prova o populismo que promete “cuidar do povo” promovendo seus cuidadores.
O confronto entre lei e costume produz uma rotina de reformas e explica nossas reviravoltas jurídicas e políticas. Experimentamos muitos regimes: Colônia, Império, República, Estado Novo, ditadura militar, parlamentarismo, democracia e democracia de coalizão. Todos esses regimes têm um fundo comum: um personagem capaz de aglutinar tendências ideológicas. A despeito disso, contudo, hábitos religiosos, vigentes na moralidade, só agora têm sido discutidos.
O resultado é a descoberta de que um Brasil republicano e universalista está em luta contra um resistente Brasil familista, populista e particularista. É o tumulto da “casa” contra a “rua”, e não da casa como complemento da rua, conforme mostrei no livro “A casa & a rua”, publicado em 1985.
Não é fácil romper hábitos e costumes hegemônicos da reciprocidade inscritos no aforismo “Aos amigos tudo, aos inimigos, a lei”; nem é tranquilo suprimir as hierarquias que dividiram nobres e plebeus, bispos e crentes e poderosos “donos” do povo.
Não é trivial relativizar as “regalias” com os “privilégios” e prerrogativas de cargos que usufruem isenção. Pois, caso seus ocupantes cometam um crime, são dele isentos ou julgados por leis apropriadas à sua condição.
Vale remarcar. Democracia é fácil de falar, mas difícil de fazer. Sobretudo num sistema em que a amizade, o companheirismo e a filiação podem relativizar a lei geral porque, até hoje, relativizamos pouco nossos costumes fincados em hierarquias e gradações.
Uma desconfiança da regra da lei paradoxalmente promovida pelo STF diz que é tempo de, com sensatez, harmonizar costumes e leis. E, se possível, de abandonar o axioma de Oliveira Viana, segundo o qual “tenho coragem para tudo, menos para negar o pedido de um amigo”. É de cortar o coração, mas é preciso tentar.
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