domingo, 29 de março de 2020

O coronavírus vai trazer um mundo desglobalizado?

A pandemia Covid-19 atingiu o comércio mundial numa altura em que ele já revelava fragilidades. A crise financeira internacional de 2008 – e a recuperação débil que se lhe seguiu – tinha abalado o ritmo de crescimento das trocas internacionais. Nos anos seguintes, o Brexit, a eleição de líderes populistas e o enfraquecimento do multilateralismo foram arrefecendo ainda mais a integração das economias, até à cereja no topo do bolo do protecionismo: a guerra comercial lançada por Donald Trump contra a China, a que se juntaram conflitos e tensões com muitos outros países. O coronavírus é mais um forte abalo a este modelo debilitado.

Para perceber o impacto do vírus na economia, é preciso primeiro reconhecer o elevadíssimo nível de integração da produção mundial. A versão simples – fábrica recebe matéria-prima e produz um bem que vende aos consumidores – é como se pertencesse à Idade da Pedra. Hoje, mais do que um longo fio, as cadeias de produção assemelham-se a uma teia altamente complexa, com uma enorme fragmentação dos fornecedores e muitos passos intermédios, que tornaram o processo mais rápido, barato e eficiente. Uma transformação alcançada através de mais cooperação, avanços tecnológicos e uma gestão mais sofisticada, mas que apenas foi conseguida devido à deslocação massiva da produção para países com salários muito mais baixos.

Veja-se a descrição que fazia o presidente da Associação Nacional de Vestuário e Confecção (ANIVEC/APIV) há algumas semanas à VISÃO: “Um casaco pode ter 20, 30 acessórios, de seis ou sete países. Basta faltar um para não se fazer”, dizia César Araújo. “O vestuário é o setor mais globalizado do mundo. 85% de todos produtos que se compram na Europa vêm da Ásia, seja o produto acabado ou as matérias-primas.”

Obviamente, não é só no têxtil que as coisas funcionam assim. Por exemplo, para a Autoeuropa construir um carro em Portugal tem de importar peças de 26 países diferentes, para depois o exportar para 56 países. Hoje, este é o modelo central de toda a indústria.

O problema é que aquilo que permitiu uma maior eficiência das cadeias de produção é o que agora as ameaça. Um choque num dos pontos que compõem essa teia compromete toda a estrutura. E quando esse ponto é o centro de gravidade do comércio internacional, os efeitos são ainda mais devastadores.


O mesmo César Araújo não tem dúvidas: a Covid-19 é a gota de água que exige que repensemos esta forma de organização das cadeias de produção, a dependência da China e a necessidade de voltar a debater uma política industrial europeia. “A Europa é grande demais para estar refém de um país com regras tão diferentes.”

Muitas empresas parecem a estar a pensar exatamente no mesmo. Alicia García-Herrero, investigadora do Bruegel, tem escrito abundantemente sobre o tema. Entrevistada pela EXAME, a economista aponta que o processo de saída da China já começou.

“As empresas já estão a pensar nisso há algum tempo, especialmente grupos japoneses, taiwaneses, coreanos… O motivo não era medo de um choque, mas o facto de os salários estarem a crescer mais rápido na China do que noutros países do sudeste asiático. A guerra comercial foi outro motivo de alarme”, explica García-Herrero. “Há quem me diga que é uma expressão infeliz, mas acho que faz sentido: o coronavírus é apenas o último prego no caixão. A China já estava a perder antes do coronavírus e vai perder ainda mais agora. O risco de excessiva concentração está na cabeça de todos os líderes de grandes empresas.”

À medida que a Covid-19 deixou de ser apenas um problema chinês e se transformou numa crise global, esta discussão também se alargou: mais do que debater a excessiva dependência da China, coloca-se em causa o próprio modelo económico.

Após décadas de consenso acerca de um mundo integrado – com mais movimento de pessoas, mercados a abrirem-se, economias ricas a terem acesso a bens mais baratos e milhões de pobres de países como a China a saltarem para a classe média – o otimismo com a globalização começou a desaparecer. “Nesta última década assistiu-se a um recuo dessa perspetiva optimista, com mais e mais pessoas dispostas a trocar eficiência, crescimento e abertura por autonomia e preservação do seu modo de vida. Como os brexiters dizem no Reino Unido, eles querem “recuperar o controlo””, escrevia Stephen Walt na “Foreign Policy”.

Este ambiente, somado à pandemia que está a varrer o mundo, pode trazer consequências muito mais vastas do que um mero repensar da dependência da China, avisa García-Herrero. “Estamos em modo de desglobalização. Ponto final. Não só de comércio, mas também de movimento de pessoas. Não queremos aceitar, mas está a acontecer”, sublinha. “No comércio, a liberalização tornou-o mais livre e com menos tarifas. Com as pessoas foi igual. Cada vez menos restrições ao turismo, toda a gente estava a aproveitar um mundo sem fronteiras para turismo e negócios. Acho que isso desapareceu. Estamos a caminhar para um mundo de menor movimento de pessoas.”

Essa é, aliás, uma diferença entre um choque como a guerra comercial EUA vs. China e a Covid-19: esta segunda está a atingir fortemente o movimento de pessoas. “Estamos um pouco distraídos com as notícias [do vírus] e não estamos a ver para onde estamos a caminhar. Os nossos governos vão ser mais ativos na restrição de movimentos”, explica. E muitas das decisões obedecem a uma lógica política. Veja-se a decisão de Donald Trump de, inicialmente, banir as viagens da União Europeia, mas não do Reino Unido ou a sua insistência de um muro com o México para combater a epidemia. “Muitos governos estavam ansiosos por começar isto”, frisa García-Herrero.

Ricardo Reis, professor da London School of Economics, admite que esse impacto na globalização se possa verificar, mas que “dependerá da reação política”. Por um lado, “esta crise pode ser agudizada e levar a um efeito mais permanente na globalização”. Por outro, “pode permitir perceber como a ajuda internacional e as trocas comerciais são importantes”.

O economista lembra que a Grande Depressão iniciada em 1929 foi mais intensa devido a dois motivos: insistência no padrão ouro; e protecionismo. “É um exemplo de como políticas erradas para lidar com um choque podem tornar uma recessão numa depressão”, diz à EXAME.

O economista reconhece, contudo, que “muitas empresas perceberam que têm de diversificar” a localização da produção. “Não podem ter toda a cadeia de produção na mesma província. Será uma lição que levará a uma reorganização da produção nos próximos anos.”

O debate não está apenas entre académicos. Começamos a assistir a algo que há poucos anos consideraríamos improvável: empresários a defender limites à globalização. “Sem pôr em causa as vantagens inerentes à participação das empresas nas cadeias de valor globais, justifica-se, do ponto de vista das estratégias empresariais, uma avaliação atenta dos riscos que lhe são inerentes”, escreveu António Saraiva num artigo de opinião no Dinheiro Vivo. Referindo-se ao sistema de produção “just in time”, o presidente da Confederação Empresarial de Portugal – CIP deixa ainda a pergunta: “Até que ponto estará a preocupação pela redução de custos a tornar as cadeias de valor excessivamente rígidas?”

Perguntas como esta estão a ser feitas pela própria OCDE. A economista-chefe da instituição que junta os países mais desenvolvidos do mundo admite que a Covid-19 poderá trazer mudanças ao actual modelo, baseado numa gestão em tempo real de stocks e em cadeias de valor altamente integradas. “Da mesma forma que os bancos centrais podem rever o seu modelo de política monetária, acho que depois desta epidemia, as empresas vão provavelmente analisar a forma como gerem stocks e como organizam a produção por todo o mundo”, previu Laurence Boone. Tradução: a globalização, pelo menos como a conhecemos, poderá deixar de existir.

Alguns chefes de Estado não têm problemas em assumi-lo. “Vemos claramente que somos demasiado dependentes do fornecimento de países estrangeiros […] Vamos rever as nossas cadeias de produção industrial para ver como podemos relocalizar os negócios nas áreas mais estratégicas de forma a sermos soberanos e independentes”, afirmou o ministro das Finanças francês, Bruno Le Maire, citado pela Bloomberg. A Covid-19, prevê, será um “game changer” para a globalização.

A Covid-19 não é a única fonte de pressão sobre a globalização. A integração económica internacional entrou numa fase de marasmo nos últimos dez anos. Num relatório que publicou no início de fevereiro no Bruegel, García-Herrero, explica que “parecem existir provas suficientes de que o processo de globalização, incluindo os fluxos de comércio, capital e pessoas, estagnou desde 2008”. Desde a eleição de Donald Trump, essa estagnação chegou mesmo a dar lugar a recuos.

Entre 2009 e 2018, o volume comercial cresceu 3,5% ao ano, quando a média pré-crise era de 7,6%. Nos últimos meses, ainda antes da pandemia, a travagem foi maior. “Estamos agora numa estagnação, o que é compreensível com a guerra comercial entre EUA e China e outras ondas de protecionismo, como aquela que existe entre os EUA e a Europa, mas também Japão e Coreia”, escreve a investigadora. Os fluxos de capitais também estão a recuar, com o investimento direto a cair desde 2015.

Ao mesmo tempo, assiste-se a um enfraquecimento do multilateralismo, com uma Organização Mundial de Comércio cada vez mais impotente. Desde 2016, a Administração norte-americana deixou de valorizar a OMC, procurando resolver as suas queixas comerciais de forma bilateral, normalmente com a ameaça de agravamento de tarifas. O “comércio livre” voltou a ser uma arma diplomática. Mas a responsabilidade não é apenas de Donald Trump. A entrada de novos membros e a postura da China foi dificultando a chegada a acordos alargados.

O movimento de pessoas era a característica da globalização que se mantinha com menos disrupções, ainda que a avançar a um ritmo mais lento e com movimentos anti-imigração a ganhar espaço, principalmente desde a crise de refugiados de 2015. A Covid-19 encarregar-se-ia de ajudar a derrubar esse pilar. É complicado viajar quando não se pode sequer sair de casa. O turismo, que não parava de crescer, está a ver a sua atividade cair para zero e os Estados entrincheiraram-se nas suas fronteiras.

“O coronavírus já está a forçar restrições de viagens, acusações entre governos e uma série de ataques xenófobos em vários países”, escreve Ian Bremmer, presidente do grupo Eurasia, na TIME. Dos EUA têm nascido várias teorias da conspiração sobre o papel de Pequim na eclosão da pandemia, com o secretário de Estado Mike Pompeo a referir-se constantemente a ela como “o vírus de Whuan”, enquanto Donald Trump fala num “vírus chinês”. Na China, o porta-voz do ministro dos Negócios Estrangeiros tweetou recentemente uma teoria da conspiração que culpa as forças armadas norte-americanas por trazerem o vírus para a China.

Na União Europeia, velhas feridas voltam a abrir-se: os países do Sul pedem solidariedade sob a forma de emissões conjuntas de dívida, quanto os países do Norte mantêm a posição assumida na crise de 2010. António Costa considerou “repugnante” a atitude do ministro das Finanças holandês que, segundo fontes comunitárias, sugeriu que países como Espanha fossem investigados pela Comissão Europeia, para perceber porque lhes falta espaço orçamental para lidar com a Covid-19. O combate à pandemia está a revelar-se uma luta pela futuro da própria Europa.

Quanto tempo durarão as restrições de movimentos de pessoas? Quando a emergência desaparecer, todos os países irão eliminá-las ao mesmo ritmo? “Dependendo dos danos humanos e económicos que o vírus irá provocar por todo o mundo, o coronavírus pode um dia ser considerado um ponto de viragem para toda a economia mundial”, acrescenta Bremmer.

É provável que essa viragem já esteja a acontecer. O que ainda não sabemos é qual será a nova direção e se, coletivamente, ela nos deixará melhor.

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