quarta-feira, 15 de abril de 2020

Quem é o inimigo?

É mais comum e plausível atribuir problemas e dificuldades a inimigos externos do que a sentimentos, indecisões e frustrações que vêm de dentro de nós mesmos. Bruxos, feiticeiros, demônios e inimigos são extravagantes. Pessoas deformadas, seres intermediários, gênios ou estrangeiros. Recriminamos quem não sabe bem o seu lugar; ou quem simplesmente não cabe num sistema classificatório.

Basta um mínimo de saber psicológico para desvendar o problema: os inimigos nem sempre vêm de fora. De fato, quem regularmente nos ataca somos nós mesmos — ou um pedaço não percebido de nós que inevitavelmente vira quinta-coluna ou carrasco. Seja porque é negado, seja porque jamais é levado em conta e, eis um problema capital: seja porque nós somos inseguros ou ignorantes.

O coronavírus vem de fora para dentro, mas torna-se letal quando se instala dentro de nós. Então, como um pesadelo, ele nos tira a paz. É muito mais fácil lutar contra um inimigo claramente marcado do que enxergar os mecanismos que usamos para nos adoentar.

E nisso o Brasil, que experimentou todos os regimes políticos, tem sido campeão. Pois se mesmo nas democracias originais e consolidadas é complicado ser democrata; imagine fazer isso tendo como base um regime monárquico e escravocrata no qual os negros eram seres legalmente classificados como semi-humanos. Um sistema, ademais, cujos intelectuais estavam convencidos pela ideia simplista (para não dizer cretina) de que num lugar idealizado chamado “Europa” existiam sociedades perfeitas.


Apesar dos dissabores, falamos com mais objetividade da Covid-19 do que com o que ela, como um hóspede execrável, demanda. O problema não é só a letalidade do vírus, mas como, num país de mandões, organizar as autoridades que eventualmente politizam o vírus para tirar da pandemia pequenas desforras como se fossem crianças disputando bolas de gude — quando, na verdade, a doença nos obriga a enxergar os frutos podres de um país desgraçadamente arruinado por uma desigualdade interna pela qual ele é o único responsável.

Como se a aposta no tanto pior melhor e todo esse desamor pelo Brasil não fossem suficientes, assistimos abestalhados um teatro de horrores produzido pelo próprio presidente da República, que, conscientemente, sabota o bom senso, a racionalidade e as esperanças de quem o elegeu.</p><p>Eis um líder que não sabe quem é o inimigo nesta lamentável sociedade de patrões que ainda discute se o socialismo de Estado inevitavelmente autoritário é melhor do que um liberalismo econômico probo fundado na igualdade como um valor e coadjuvado por filantropia. Essa inconsciência sobre quem é o inimigo revela como somos os maiores inimigos de nós mesmos.

Eu vivi o suicídio de honra de Vargas e a renúncia de Jânio Quadros — suicídios políticos que quase destruíram as esperanças de mais igualdade numa democracia incipiente. Guardando as singularidades, em ambos os casos o maior obstáculo não veio de fora, mas de dentro.

Tal como a Lisboa dos 1800 viu a família real e a sua corte abandonar o reino, estamos vendo hoje um eleito dilapidar com gosto epidêmico e sem piedade o seu capital eleitoral. Se Vargas se matava por motivos morais, se Jânio Quadros abandonava o palco por conta de “forças ocultas”— fantasmas que podem ser atribuídos mais a Jânio do que ao sistema político —, hoje assistimos estupidificados a um presidente usar o seu papel mais para discordar, desafiar e agredir do que para executar as regras que jurou solenemente levar a sério.

Há um conhecido adágio na área da administração. Em geral, o medíocre prefere a mediocridade. Escolher quem é melhor pode causar o desconforto do confronto inevitável com a sua própria burrice, mas traz felicidade para a categoria ou para a terra que você lidera.

Caso contrário, faça como o personagem de Machado de Assis, o Dr. Simão Bacamarte, que se internou no manicômio criado por ele próprio porque, depois de alienar todo mundo, ele agora sabia que o louco era ele.<

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