quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

A divinização do utilitário

O grande conflito de hoje, no domínio socioeconómico, por exemplo, e contra a previsão de um Marx, não é o que opõe o Capital e o Trabalho, mas o que comanda a máquina e o que a serve (François Perroux). Mas o efeito mais visível, porque mais extenso, da sua compacta presença, é o que degrada os sonhos ao tangível e utilitário que define a vituperada «sociedade de consumo». Não é assim o útil ou utili­tário que se condena: é a sua divinização. O que surpreende no mundo de hoje não é a sedução da comodidade, mas que ela esgote todas as seduções; não é o sonho de «viver bem», mas que só se viva bem com esse sonho. Decerto o viver bem foi sempre um sonho de quem teve por sorte o viver mal. Mas a realização em massa dessa ambição instaura-se em plena força como modelo. E não apenas por ser uma realização em massa, mas porque aos «responsáveis» nenhum valor se impõe para a esse imporem. O utilitarismo é um valor negativo; mas con­verte-se em positivo pela negatividade de quem poderia recusá­-lo. O que nos «irresponsáveis» é uma ambição em positivo, é nos «responsáveis» uma aceitação em negativo, porque nenhum valor positivo lhe contrapõem. Um automóvel é para uns um fim; mas se para outros deveria ser um meio, ele é um meio para coisa nenhuma e converte-se desse modo também num fim. O optimismo da conquista converge assim com o pessi­mismo da desistência para um vértice comum. Decerto não se ignora a contestação sofrida pela «sociedade de consumo». Mas a contestação só se realiza em eficácia, se o não é uma abertura para o sim. Denunciar um erro é necessário; mas quem tem uma verdade, mesmo errada, pode exigir-nos a verdade certa - e nós não a temos.

Mas o sonho utilitário não apaga o sonho como tal, o que no homem, porque humano, é ainda o sem-limite. Porque se não reinventa um homem totalmente, mesmo o homem cir­cunscrito ao tangível do utilitário. Curiosamente assim o próprio sonho se degrada sem se anular como sonho. Curiosamente assim o homem é ainda o «ser de horizontes» (Heidegger), ainda quando esse horizonte for a montra de uma loja... O mais que nunca é bastante, o máximo que está para além de todos os máximos e é em si o máximo humano, converte-se agora não no que supere os limites do utilitário mas no que supere os limites de cada objecto útil. Assim o absurdo limite que num Sartre é o homem-deus é no societário de consumo o automó­vel-perfeição, o aparelho-absoluto. Eis porque o reclame do super é uma constante de um reclame - desde o super-detergente ao super-Constelation. O super fala em linguagem degra­dada o que em linguagem humana fala da nossa ascensão. [Assim a própria crise do casamento - uma determinante do nosso tempo - pôde ser reportada à insatisfação no «consumo» ­(Eduardo Lourenço); assim uma mulher se pôde igualar, na sedução, ao frigorífico ou ao aspirador. .. Mas é possível, se não evidente, que a razão esteja mais longe - na radical exteriori­dade que a tecnologia promove em cuja superfície estéril um valor se não radica.]

Vergílio Ferreira,"Invocação ao Meu Corpo"

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