quarta-feira, 23 de outubro de 2019

O bolsonarismo é uma força de traição

O contrato de aluguel firmado entre Gustavo Bebianno e Luciano Bivar era claro: o presidente do PSL entregaria o partido ao bolsonarismo, com porteira fechada, durante o processo eleitoral, e o teria de volta, robusto, ao fim da eleição.

Era – para quem desconhece a natureza do fenômeno bolsonarista – um típico acordo de ganha-ganha. Jair Bolsonaro levaria a plataforma burocrática necessária ao pleito pela Presidência; e Bivar a retomaria adiante com, na pior das hipóteses, uma bancada parlamentar encorpada e maior valor no mercado dos fundos públicos partidários. Em tese, um baita negócio.

Nunca houve santos nesse trato; sendo a desqualificação partidária contida no business mais um golpe desferido pelo bolsonarismo contra a democracia representativa. Todos os que, filiando-se ao partido de aluguel, associaram-se ao projeto autoritário de poder bolsonarista – tanto os de boa vontade quanto os em busca de uma boquinha – são responsáveis pela depreciação político-institucional que o arranjo PSL/Bolsonaro desfecha. Entre os signatários do pacto vil, porém, foi Bivar quem cumpriu sua parte; decerto iludido sobre o caráter bolsonarista e a inevitabilidade de que, cedo ou tarde, para além do simples desrespeito a acordos, traísse.


Essa gente trai. Tem a índole para o expurgo. Atrai e trai. Atrai, instrumentaliza, manipula, gasta, desgasta – e trai. Então, passada a eleição, com Bolsonaro consagrado presidente, e não sem rápidos indícios de que seu controle sobre o Estado pudesse se estender também à Polícia Federal, era questão de tempo até que a engenharia de intimidação bolsonarista se concentrasse em assaltar e tomar o partido; em rebaixá-lo para melhor capturá-lo segundo o interesse autocrático: uma mera estrutura sem identidade, para fins formais, mas com fundos para bancar a conta do projeto personalista de poder do bolsonarismo.

Sob esse movimento reacionário populista, apenas os Bolsonaro terão vez; todos os demais a engordar, com cargos, influência e até votos, somente se submetidos à ordem familista, sem aspirações pessoais que extrapolem as do presidente e filhos. Quem, por exemplo, tiver visto o discurso leninista do assessor especial da Presidência Filipe Martins no tal CPAC Brasil, o piquenique de Eduardo Bolsonaro pago com dinheiro público, terá percebido que ele entendeu essa dinâmica; daí por que tenha falado, sem sombra de vergonha, em amor dos brasileiros a Carlos Bolsonaro e irmãos.


Martins vai tão longe por quão longe for o bolsonarismo. O mesmo não se pode dizer de Joice Hasselmann, degredada pela fátua bolsonarista ainda sem saber por quê. Ora, ela desejou ser prefeita de São Paulo; cultivou relações com João Doria e Rodrigo Maia; e ainda crê que os ataques de que é vítima, decorrentes de uma crise artificial forjada pelo próprio Bolsonaro e disparados por seus filhos e asseclas, ocorram sem o aval do presidente.

No universo do bolsonarismo, para que se meça a flexibilidade da República dos Emojis, Hasselmann é considerada independente em excesso.

Hoje me parece óbvio que um dos fatores decisivos para a queda de Bebianno tenha sido a pretensão de honrar o contrato com Luciano Bivar. Não porque símbolo da virtude, mas por conhecer a operação partidária levantada para eleger Bolsonaro e temer que a ruptura do acordo – considerados o nível indigente e o grau de ambição da bancada eleita pelo PSL – resultasse numa convulsão no baixo clero que ascendera surfando a onda bolsonarista e, pois, na multiplicação de franco-atiradores como delegado Waldir.

Todo mundo ali sabe o que se fez no verão passado. Esta é a razão por que, em resposta ao pedido bolsonarista para ter acesso às contas do PSL, venha a demanda dos aliados de Bivar para examinar os extratos do partido durante o período eleitoral. Pode isso acabar bem para uma administração ainda aos dez meses do primeiro de quatro anos? Que tenhamos uma certeza, contudo: o bolsonarismo esticará essa corta ao máximo da tensão, ainda que com prejuízos – a parca agenda travada no Congresso – para o governo.

Para a agenda revolucionária bolsonarista: tanto melhor. Apostando no peso da caneta do presidente e na musculatura de seus braços difamadores, o bolsonarismo sabe que terá o partido. Se não o PSL, outro.

Aqui, por fim, é necessário distinguir a primazia do projeto de poder bolsonarista sobre qualquer projeto de Brasil que franjas liberais do bolsonarismo possam tentar esboçar a partir da economia. Não importa o país real, o do desemprego. Somente uma abstração de um tal Brasil conservador cujos princípios vão longamente violados.

O governo Bolsonaro – apenas a chave que franqueia a máquina federal ao avanço de uma autocracia – não pode ser lido por olhos que busquem o valor republicano da estabilidade, da governabilidade. O projeto prospera no caos. O Brasil vai mal. Não tenhamos dúvida de que o bolsonarismo vai bem.

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