Considero-me feliz por ter passado um fim de semana colado à TV, vendo o fim de uma longa ditadura, as pessoas festejando nas ruas de Damasco, os presos saindo das masmorras, bandeiras, gritos, exilados preparando a volta.
Pensei em escrever sobre a Síria. Na verdade, estou lendo o livro de Clarissa Ward, uma repórter de TV que conta suas incursões clandestinas para documentar a oposição a Bashar al-Assad. À noite, depois de enviar suas reportagens, ela costumava se indagar como os americanos receberiam aquilo, na hora do jantar, ou mesmo levando as crianças para a cama. Tudo tão distante.
Imagina escrever sobre a Síria para o Brasil, sobretudo para nossa cidade envolta numa onda de violência arrasadora. Há algum tempo, o Rio tem uma Faixa de Gaza, e as pessoas já morrem baleadas dentro de hospitais, como a médica da Marinha Gisele Mendes de Souza e Mello. Ela foi atingida por um tiro de pistola. Bala perdida, como tantas outras que acham corpos inocentes.
Vivemos numa cidade distópica, e o absurdo de seu cotidiano se espalha para o Brasil com incrível rapidez. Em São Paulo, a PM joga o homem de uma ponte; na Bahia, um vereador joga dinheiro pela janela na chegada da Polícia Federal. Nas comunidades do Rio a polícia combate uma quadrilha forte de ladrões de carro, dirigida por Fernandinho Beira-Mar, que está encarcerado há 23 anos. Em Brasília, deputados fazem uma rebelião para manter suas emendas sem rastreabilidade e transparência.
Não cabe mais a pergunta ingênua: onde vamos parar? Já estamos numa situação inaceitável, e as elites ainda não descobriram que é preciso desvendá-la com urgência. E finalmente fazer alguma coisa; antes que as pessoas deixem de se importar com o que é real e o que é fantasia, antes que simplesmente deem as costas para os acontecimentos. Vamos usar uma tática de avestruz? Fogos ou bombas? Os gatos são mais sábios, correm dos dois.
Vivemos o momento em que a dívida da redemocratização com uma política democrática e eficaz de segurança precisa ser paga, ou ela ameaça devorar a própria democracia. Não sei se a pura criação de um sistema nacional de segurança pública, associando governos federal e estaduais, resolverá o problema. No momento, a ideia caminha muito lentamente. Um projeto desse tipo demanda discussão ampla. Secretários de Segurança fazem sugestão. Ótimo. Alguns governadores rejeitam a ideia com medo de perder autonomia.
Pode chegar um momento em que a maioria dos estados aceita o projeto. Por que não realizá-lo apenas com os que aceitam? Por que não antecipá-lo com governos que pedem socorro, como o Rio de Janeiro? As pesquisas mostram que, ao lado da economia, a segurança é o problema central para a maioria dos brasileiros. Por que não tratá-lo com a urgência necessária?
Sempre haverá alguém argumentando que a violência é um fenômeno superficial com causas profundas. Por que não defender essa tese abertamente, apontar as causas e os caminhos para resolvê-las? A hipótese de que as pessoas estão preocupadas com algo que não merece um esforço de peso é, no fundo, uma arrogância intelectual que não leva em conta o que se passa no cotidiano. Vivemos numa cidade ocupada parcialmente por milícias e traficantes. Para grande parte de nosso povo, não existe outra lei que não a dos grupos armados: é preciso sobreviver em silêncio e cabisbaixo.
É reconfortante ver a ditadura síria ir para o espaço, mesmo sabendo que o futuro do país ainda é uma incógnita. O fim de uma ditadura é algo para celebrar. Mas quando mesmo nos livraremos dos pequenos tiranos que dominam nossas comunidades? Quando veremos o povo festejar sua liberdade?
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