Primo Levi começou a escrever o seminal “É isto um homem?” em dezembro de 1945, imediatamente depois de retornar do campo de Auschwitz para sua Turim natal, num “impulso violento e imediato”, como indicou no prefácio da época. Iniciou pelo último capítulo, que trata dos dez dias entre a derrocada dos nazistas e a chegada dos russos que libertaram o campo. O manuscrito enviado à editora italiana Einaudi acabou rejeitado por ninguém menos que Natalia Ginzburg, mas o escritor compreendeu: a negativa fora expressão de uma rejeição coletiva e ampla. Naquele imediato Pós-Guerra, viveu-se “um tempo de esquecimento voluntário, de relação conflituosa entre a memória e o olvido”. Ao contrário do que havia ocorrido ao final da Grande Guerra de 1914-18, cuja memória coletiva logo se espraiou e alterou comportamentos no continente europeu, na barbárie seguinte deu-se o contrário. A torrente inicial de relatos feitos por sobreviventes permaneceu desestimulada por quase duas décadas.
No relato de Levi, as vítimas nem sempre morrem, simplesmente vão se apagando, desaparecem. Uma cena descreve o raro enforcamento público de um prisioneiro que participara de um levante no campo de Birkenau, cuja punição, paradoxalmente, conseguiu devolver-lhe humanidade e identidade.
Meses atrás o editor israelense Noam Sheizaf debruçou-se sobre uma nova versão em hebraico de “É isto um homem?” para refletir sobre a desumanização crescente e contínua de lá para cá. Houve o genocídio cometido pelo governo de Ruanda em 1994 (quase 1 milhão de tútsis chacinados em apenas três meses), houve o massacre de 8.372 meninos e homens muçulmanos na Bósnia enquanto fugiam de olhos vendados e mãos amarradas pelos rios, floresta e campos de Srebrenica, há a metódica asfixia do viver e ser palestino em Gaza. Com a separação em curso entre humanidade e ser humano, está cada vez mais difícil encontrar palavras que nos devolvam o sentido de responsabilidade, envolvimento, um mínimo de honestidade interior e consciência.
Exatamente uma semana atrás, no alto de uma colina de Damasco, capital da Síria, os portões da infame prisão política de Sednaya foram derrubados a marretadas, em sequência ao golpe-relâmpago que implodiu a longeva ditadura dos Assad. Daquela masmorra onde perto de 30 mil presos políticos simplesmente sumiram e outros tantos foram declarados mortos, começaram a emergir os sobreviventes de 53 anos de ditadura e 13 de guerra civil. Alguns haviam perdido a memória, outros partes do corpo, muitos a própria alma. Em sentido contrário, colina acima, uma fila cerrada de vultos acorreu em busca de esperança — uma pista, um documento, algum vestígio de parente engolido há anos pela engrenagem do regime deposto. Será preciso reaprender a falar, a usar a palavra, a sair do silêncio, a apoiar-se na potência transformadora da arte.
O “presente” anunciado no título deste texto é um convite, grátis (disponível no link). Trata-se de um curta intitulado “AMA”, referência à milenar tradição japonesa de mergulhadoras de pérolas. A música “Sarajevo”, do compositor germano-britânico Max Richter, despedaça, enleva, perturba. Ela conta o cerco estrangulador de três anos, dez meses, três semanas e três dias à cidade bósnia na guerra civil iugoslava dos anos 1990. Julie Gautier, uma artista francesa nascida na Ilha da Reunião, interpreta a música num balé subaquático de seis minutos e meio ininterruptos, sem ajuda de equipamento respiratório. Difícil não se deixar reumanizar diante do belo. Vale a pena tentar para poder respirar de novo.
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