O que fascina em Hannibal Lecter, o canibal erudito d’ “O silêncio dos inocentes”, a que Anthony Hopkins deu corpo, é o contraste entre a elegância e sofisticação do criminoso e a violência dos seus crimes. Se Hannibal falasse como um carroceiro, seria um mero canibal.
O bom de usar exemplos preconceituosos com carroceiros é que já não existe nenhum. Aqui vai, pois, um primeiro conselho aos jovens escritores sem coragem para enfrentar a Brigada do Politicamente Correto (BPC): quando for necessário dar algum exemplo negativo, usem apenas profissões extintas, como ouvidores-mores, fanqueiros, ferreiros ou carrascos. Carrascos ainda existem, é verdade, mas trata-se de uma profissão tão desmoralizada que é legítimo desmoralizá-la ainda mais sem temer confrontos com a BPC.
Segundo conselho: se escolherem um carroceiro como personagem façam-no falar como um príncipe. É verdade que os príncipes reais raramente têm a elegância e riqueza vocabular que distinguia, por exemplo, um Antônio Houaiss (de todas as pessoas que conheci, aquela que melhor falava a nossa língua). A História abunda em príncipes que falavam como carroceiros. Basta pensar no Príncipe Charles e na famosa pérola com que seduziu a então amante, hoje esposa, Camilla Parker Bowles: “Quero ser seu absorvente íntimo.” Suspeito que com esta frase Charles fez mais pela causa republicana do que a Revolução Francesa.
Concluindo: colocar um príncipe falando como um carroceiro está mais de acordo com a realidade, e, ao mesmo tempo, adensa o personagem. Colocar um carroceiro falando como um filósofo (agora estou a supor que os filósofos falam como o Antônio Houaiss, o que também está longe de ser verdade — basta pensar em Olavo de Carvalho), pode soar pouco verossímil, mas torna o personagem mais intrigante.
Voltemos a Hannibal Lecter. Um psicopata assassino simpático, educado e sofisticado é perturbador porque gostaríamos de ser amigos dele. A atração pela luz negra de certos abismos é, não por acaso, um dos grandes temas da literatura universal.
O que me parece muito mais difícil de compreender é a atração por figuras más e vulgares. Digamos, pelo canibal carroceiro; pelos abismos sem luz; por Bonnie & Clyde sem a história de amor. Se na literatura tais personagens não funcionam, na vida há cada vez mais exemplos de sujeitos assim, que contra todas as previsões não só triunfam como são amados pelo povo (daqui se pode concluir que a literatura é mais lúcida do que a vida).
Aquilo a que se convencionou chamar populismo não é outra coisa senão a exploração de uma patologia social, que faz com que os ratos sintam uma irresistível atração por gatos. Populista é aquele tipo de sujeito que, para diminuir a pobreza, defende o assassinato dos pobres — e é eleito por eles.
Populistas odeiam a arte, a cultura, tudo o que seja educação, porque sabem que só prosperam no terreno movediço das fake news, do medo e da irracionalidade.
Para alcançar sucesso num tempo como o nosso, e continuar devorando as suas vítimas, Hannibal Lecter teria de se fingir estúpido. Se conseguisse correria o risco de se ver eleito presidente da República.José Eduardo Agualusa
O bom de usar exemplos preconceituosos com carroceiros é que já não existe nenhum. Aqui vai, pois, um primeiro conselho aos jovens escritores sem coragem para enfrentar a Brigada do Politicamente Correto (BPC): quando for necessário dar algum exemplo negativo, usem apenas profissões extintas, como ouvidores-mores, fanqueiros, ferreiros ou carrascos. Carrascos ainda existem, é verdade, mas trata-se de uma profissão tão desmoralizada que é legítimo desmoralizá-la ainda mais sem temer confrontos com a BPC.
Segundo conselho: se escolherem um carroceiro como personagem façam-no falar como um príncipe. É verdade que os príncipes reais raramente têm a elegância e riqueza vocabular que distinguia, por exemplo, um Antônio Houaiss (de todas as pessoas que conheci, aquela que melhor falava a nossa língua). A História abunda em príncipes que falavam como carroceiros. Basta pensar no Príncipe Charles e na famosa pérola com que seduziu a então amante, hoje esposa, Camilla Parker Bowles: “Quero ser seu absorvente íntimo.” Suspeito que com esta frase Charles fez mais pela causa republicana do que a Revolução Francesa.
Concluindo: colocar um príncipe falando como um carroceiro está mais de acordo com a realidade, e, ao mesmo tempo, adensa o personagem. Colocar um carroceiro falando como um filósofo (agora estou a supor que os filósofos falam como o Antônio Houaiss, o que também está longe de ser verdade — basta pensar em Olavo de Carvalho), pode soar pouco verossímil, mas torna o personagem mais intrigante.
Voltemos a Hannibal Lecter. Um psicopata assassino simpático, educado e sofisticado é perturbador porque gostaríamos de ser amigos dele. A atração pela luz negra de certos abismos é, não por acaso, um dos grandes temas da literatura universal.
O que me parece muito mais difícil de compreender é a atração por figuras más e vulgares. Digamos, pelo canibal carroceiro; pelos abismos sem luz; por Bonnie & Clyde sem a história de amor. Se na literatura tais personagens não funcionam, na vida há cada vez mais exemplos de sujeitos assim, que contra todas as previsões não só triunfam como são amados pelo povo (daqui se pode concluir que a literatura é mais lúcida do que a vida).
Aquilo a que se convencionou chamar populismo não é outra coisa senão a exploração de uma patologia social, que faz com que os ratos sintam uma irresistível atração por gatos. Populista é aquele tipo de sujeito que, para diminuir a pobreza, defende o assassinato dos pobres — e é eleito por eles.
Populistas odeiam a arte, a cultura, tudo o que seja educação, porque sabem que só prosperam no terreno movediço das fake news, do medo e da irracionalidade.
Para alcançar sucesso num tempo como o nosso, e continuar devorando as suas vítimas, Hannibal Lecter teria de se fingir estúpido. Se conseguisse correria o risco de se ver eleito presidente da República.José Eduardo Agualusa
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