segunda-feira, 1 de julho de 2019

Chegou o fim do liberalismo?

Os liberais vivem em choque. Aturdidos pelo impacto de uma realidade política que não assimilam. O século XXI está lhes caindo mal. Não compreendem por que foram golpeados tão intensamente no rosto da confiança que tinham em si mesmos. Sobretudo depois de terem contribuído de forma decisiva para ganhar as guerras mundiais que acompanharam a marcha da liberdade durante o século passado.

Nos últimos 30 anos, sua importância sofreu uma guinada radical. Em 1989, a promessa era de felicidade. As pessoas se encarapitaram no muro de Berlim, e uma primavera liberal se apropriou da história proclamando seu fim. Não durou muito o verão dessa hegemonia. A história voltou com maiúsculas. Trouxe consigo um duro inverno populista que lhes faz tiritar e com a dúvida de se não estaremos no início de uma glaciação totalitária.


De fato, se pudéssemos retroceder uma década, alguém acharia possível ver na Casa Branca um presidente empenhado em levantar um muro supremacista ao sul do rio Grande? E o que dizer do mapa político da Europa? Acaso se poderia imaginar, após a queda da Cortina de Ferro, que os defensores da chamada democracia iliberal governariam em 11 países da União e representariam mais de uma quarta parte do eleitorado do Velho Continente?

Com este panorama que se repete no conjunto do Ocidente, os liberais confrontam uma época que parece empenhada em prescindir deles. Quantos secundariam hoje em dia Václav Havel quando afirmava, durante a Revolução de Veludo, que poderia mudar o mundo esgrimindo a verdade, o espírito livre, a consciência e a responsabilidade; sem armas, nem vontade de poder ou arbitrariedade? Melhor não fazer o teste de contabilizá-los. Basta dizer que se apalpa no ambiente que o desencanto e a decepção com os valores liberais são intensos. Algo que impulsiona aqueles que, das fileiras populistas, consideram que a democracia deve se despojar do liberalismo se quiser sobreviver e defender eficazmente os interesses nacionais. Uma crítica que fundam na incapacidade dos liberais na hora de lidar com a excepcionalidade permanente a que o mundo se vê submetido desde a virada do milênio. A razão está em que não pode desenvolver um "decisionismo" liberal a partir da liberdade, da lógica deliberativa, da tolerância, da igualdade de oportunidades, do pluralismo e da defesa de um mercado não protecionista.

Esta suposta debilidade sistêmica do liberalismo frente às urgências "decisionistas" que nosso tempo apresenta é o que confere ao populismo uma vantagem narrativa que lhe faz ganhar espaço e progredir como um vetor de mudança arcaizante e autoritária, capaz de mobilizar milhões de pessoas sob slogans neofascistas. E assim, como aconteceu no período do entre-guerras, os liberais estão em xeque e na defensiva. Retrocedem diante do mal-estar de multidões radicalizadas em sua rejeição à democracia liberal e os valores que a tornaram possível, como uma esperança de mudança e progresso para a humanidade.

Os dados parecem confirmar isso. Roger Eatwell e Matthew Goodwin os analisam em National Populism: The Revolt Against Liberal Democracy(“Nacional-populismo, a revolta contra a democracia liberal”). Em suas páginas se radiografa o pano de fundo moral de sociedades ocidentais que se sentem declinantes e destruídas. Vítimas de um futuro cheio de pessimismo e incerteza que faz desejarem grandes doses de ordem e segurança por todos seus poros geracionais e de classe. Aqui é onde devemos pôr nosso foco se quisermos detectar as causas da crise do pensamento liberal e do choque que paralisa seus defensores. Falamos de motivos que batem sobre o inconsciente coletivo da democracia e que ativam sua psicologia reptiliana ao propiciar um vetor populista que muda, combinado com o nacionalismo, para uma ressignificação pós-moderna do fascismo.

Este revival de seu antípoda mais intenso e direto é o que desconcerta os liberais e os deixa fora do jogo, mergulhados numa crise de identidade muito profunda. Sobretudo porque compromete a própria viabilidade da democracia liberal, o principal produto de suas ideias. Contra todos os prognósticos, o fascismo abre caminho, escala e ganha posições. Renasce de suas cinzas, confirmando as suspeitas de que está firmemente enraizado no coração emocional do Ocidente. Não por acaso, depois da brutalidade da Segunda Guerra Mundial ele volta vigoroso, rejuvenescido, vestindo um traje que o dissimula, embora gritando o mesmo discurso antiliberal de sempre.

Denuncia-o com valentia Rob Riemen, um dos poucos filósofos liberais que restam. Em To Fight Against This Age (“lutar contra esta época”), ele nos lança uma advertência e nos pede que, independentemente dos traços populistas, autoritários ou cesaristas que o escondam, chamemos o fascismo por seu nome. Algo que exige sua denúncia e seu combate. Atitudes que o liberalismo deve confrontar depois de atacar um esforço de autocrítica que lhe faça pensar que coisas fez de ruim e, sobretudo, o que deixou pelo caminho quando venceu na Guerra Fria e todos os povos do mundo pós-soviético abraçaram suas ideias com entusiasmo.

Para isso, é preciso retroceder no tempo e compreender que o liberalismo nasceu como uma trincheira contra o medo. Uma linha vermelha da qual protegeu a heterodoxia dos dissidentes religiosos e o patrimônio destes frente ao todo-poderoso soberano. O primeiro se fez mediante a tolerância, e o segundo, com a propriedade. Algo que os liberais abordaram quase ao mesmo tempo em que Hobbes edificava o Estado moderno sobre os alicerces, justamente, desse medo que o leviatã utilizava para instaurar o governo da ordem. Daí que James Simpson sustente em Permanent Revolution (“Revolução permanente”) que a aparição do liberalismo foi basicamente uma estratégia das minorias puritanas para proteger seu catecismo calvinista em meio às guerras religiosas que sacudiram o continente europeu. Uma iniciativa que logo se tornou revolucionária e que, pela mão do iluminismo, desenvolveu um compromisso universal com a maioridade política dos homens frente aos poderes políticos, econômicos e sociais.

O liberalismo adotou, portanto, um compromisso institucional a favor da razão, do governo limitado e do progresso humano, através da democracia deliberativa e do reformismo social. Empreendeu uma luta pelos direitos que, das revoluções atlânticas à Declaração Universal das Nações Unidas de 1948, foi configurando uma civilização baseada neles. A originalidade do liberalismo, como explica Helena Rosenblatt em The Lost History of Liberalism (“A história perdida do liberalismo”), consistiu justamente em dotar a pessoa de uma blindagem de direitos invioláveis frente aos dispositivos de dominação que podiam projetar sobre ela o poder e a maioria social. Daí que os pensadores liberais influíram nas Constituições e introduziram em seus textos um somatório de liberdades. Umas, positivas ou de socialização, e outras, negativas ou de preservação da subjetividade e suas escolhas individuais. Deste modo, o medo foi contido e marginalizado como um dispositivo a serviço do poder. Além disso, este último teve que admitir que sua legitimação só podia ocorrer numa democracia que se vertebrasse dentro de uma institucionalidade liberal, baseada em direitos.

Dois séculos e meio depois do seu nascimento, o liberalismo parece estar abatido perante o ressurgimento do medo que tão eficazmente soube desativar no passado. Abre-se a seus pés uma crise de fundamentação devido ao tsunami de incerteza que leva as sociedades democráticas a desprezarem a cultura liberal dos direitos e ansiar por uma ordem autoritária. Inclusive são cada vez mais os que desejariam encerrar-se dentro de um bunker reacionário onde se refugiar da insegurança que lhes assedia emocionalmente. A própria democracia parece inclinada a deslocar seu eixo de legitimação do liberalismo para o populismo. Um fenômeno sem aparente explicação porque talvez não tenha sabido detectar adequadamente a origem dos sismos que nos desestabilizam e que transformam o pensamento liberal em papel molhado.

Procuramos explicações no passado quando teríamos que buscá-las no futuro. Em causas que têm a ver diretamente com ele. É preciso começar a assumir que a revolução digital está remexendo os alicerces da arquitetura analógica do mundo, devido ao desenvolvimento de um capitalismo cognitivo sem regulação, nas mãos de monopólios intocáveis, profundamente desigual e que substitui a liberdade humana por algoritmos. Uma revolução que inquieta sem ruído, porque se leva a cabo desprovida de controles democráticos ou debate públicos. Mas uma mudança profunda de paradigmas que está liberando mal-estares que têm um denominador comum: uma ansiedade não explícita que, entretanto, percute sobre a pele de mamífero que recobre a experiência coletiva e individual da democracia e libera deslocamentos como a mencionada reaparição do fascismo.

E é aqui onde o liberalismo capitula ante um medo ressignificado tecnologicamente. Um medo que não se desenha com precisão, mas que localiza seu olhar em um futuro sem trabalho, habitado por ciborgues e governado por uma inteligência artificial que neutralizará a espontaneidade da ação humana. Talvez seja aqui onde teríamos que identificar as causas mais secretas do colapso liberal: em que a ideia de progresso pode deixar de ser um aliado da liberdade para se transformar no tapete narrativo que nos leve a uma distopia totalitária por aclamação.
José María Lassalle, ex-secretário de Estado de Cultura e Agenda Digital da Espanha

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