segunda-feira, 22 de julho de 2019

Língua de Bolsonaro tornou-se líder da oposição

A língua de Jair Bolsonaro ganhou vida própria. Aventura-se no ramo da magia. Ela fala dez vezes antes que o presidente consiga pensar. A cada nova frase retira um gambá da cartola. Os truques causam danos insondáveis. De raro em raro, o presidente consegue farejar o mau cheiro. Às vezes, manda a assessoria corrigir as maluquices. Mas o Planalto está sempre um passo atrás da língua, que se sente à vontade para produzir crises em série.

"Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira", disse ela, a língua, envergonhando o presidente e o país numa mesa em que os garçons do Planalto serviam a jornalistas estrangeiros guloseimas num café da manhã. Um desjejum custeado pelos brasileiros dos quais o fisco arranca tudo a força, e depois chama de contribuintes.

"A questão do Inpe, eu tenho a convicção que os dados são mentirosos, e nós vamos chamar aqui o presidente do Inpe para conversar sobre isso, e ponto final nessa questão", declarou a língua. O ponto é de partida, não final, pois há um ponto fraco na tese: os dados do Inpe informam que o desmatamento na Amazônia disparou na primeira metade de julho. Superou toda a taxa registrada no mesmo mês no ano passado. Servindo-se dos lábios de Bolsonaro, a língua propagou uma versão mentirosa sobre a realidade ambiental do país.

"A cultura vem para Brasília e vai ter um filtro sim, já que é um órgão federal. Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine", declarou a ilusionista, convertendo o céu da boca presidencial na antessala da censura, um inferno do qual o país se imaginava livre. "Privatizaremos ou extinguiremos. Não pode dinheiro público ser usado para fins pornográfico. Olha, dinheiro público para fazer filme de Bruna Surfistinha, não."



A língua evolui da censura ao preconceito com hedionda naturalidade. "Desses governadores de Paraíba, o pior é o do Maranhão", ela balbuciou nos ouvidos de Onyx Lorenzoni, num lapso captado pelas câmeras da empresa oficial de comunicação. Comum no Rio de Janeiro, onde todo nordestino é um "paraíba", a metonímia veio acompanhada de um complemento que revela pendores antirrepublicanos em relação a Flávio Dino, o governador comunista do Maranhão: "Tem que ter nada pra esse cara". Em verdade, sonegam-se recursos federais não para "esse cara", mas para os "paraíbas" do Maranhão.

Num evento evangélico, organizado em Brasília pela igreja Sara Nossa Terra, a língua soou em timbre pouco cristão. Perguntou-se ao presidente se a equipe econômica estuda acabar com a multa rescisória a que os trabalhadores têm direito quando são demitidos sem justa causa. E ela: "Está sendo estudado, desconheço qualquer trabalho nesse sentido."

A declaração contraditória foi seguida de outra mais assertiva: "Essa multa de 40% foi quando [Francisco] Dornelles era ministro [da Fazenda] do Fernando Henrique Cardoso. Aumentou a multa para evitar demissão, ok? O que acontece depois disso? O pessoal não emprega mais por causa da multa."

O que desemprega é a estagnação econômica, não a multa. O gambá da mentira fede mais quando salta da cartola acompanhado de desinformação. A alíquota de 40% sobre o saldo do FGTS foi imposta pela Constituição de 1988. O que Dornelles criou, sob FHC, foi um adicional de 10%. Que não foi para o bolso do trabalhador, mas para uma reserva de caixa destinada a cobrir expurgos produzidos por planos econômicos.

A língua dá de ombros para os fatos, engata uma segunda marcha e segue em frente: "O pessoal não emprega mais por causa da multa. É quase impossível ser patrão no Brasil. Um dia o país vai ter de decidir se quer menos direitos e mais empregos ou todos os direitos e desemprego." A assessoria da Presidência apressou-se em desmentir a língua do presidente, negando a existência de estudos sobre a a extinção da multa.

Como morder a própria língua é um exercício dolorido, Bolsonaro tenta contornar o constrangimento atacando a imprensa. "Não adianta a imprensa me pintar como seu inimigo. Nenhum presidente recebeu tanto jornalista no Palácio do Planalto quanto eu, mesmo que só tenham usado dessa boa vontade para distorcer minhas palavras, mudar e agir de má-fé ao invés de reproduzir a realidade dos fatos", ele afirmou neste sábado.

Suprema ironia: na véspera, a língua difundira aleivosias sobre a repórter Miriam Leitão. Dissera que ela participou da luta armada contra a ditadura. Mentira. Negara que ela tivesse sido torturada num quartel do Exército. Os suplícios impostos à repórter, grávida na ocasião, estão registrados em processos disponíveis para consulta. Bolsonaro dá de ombros.

O capitão declara-se a favor da liberdade de imprensa, "mesmo consciente do papel político-ideológico atual de sua maior parte, contrário aos interesses dos brasileiros, que contamina a informação e gera desinformação." Bolsonaro afirma que os repórteres "morrem de saudades do PT". Para preservar a língua, iguala-se a Lula, que inclui a "mídia golpista" na "conspiração" ilusória que o levou à prisão.

Já estava entendido que, no Brasil atual, as coisas não são certas ou erradas. Sob Bolsonaro, as coisas são absorvidas ou pegam mal. Nos últimos dias, entretanto, a língua do presidente parece ter fugido completamente do controle do dono. Bateu todos os recordes da falta de recato. Esqueceu de maneirar.

As mentiras sobre a fome e o desmatamento não pegaram bem. O flerte com a censura pegou mal. Tratar nordestinos como sub-brasileiros e discriminar governadores de oposição pegou muito mal. Pendurar desinformação nas manchetes sobre a legislação trabalhista pegou ainda pior. Caluniar uma repórter respeitável potencializou o surto de barbaridades.

Alçado ao trono como resultado da onda antipetista que varreu o país na sucessão de 2018, Bolsonaro já deveria ter notado que vive um momento inédito da história brasileira. Nesse instante especial, a empulhação é o caminho mais longo entre um projeto de governo e a sua realização. O capitão teria de trazer a língua na coleira. Mas ela, além de falar demais, cala demais.

A língua grita contra perversões alheias, mas silencia diante da cruzada de Flávio Bolsonaro para brecar o inquérito que o investiga por peculato, lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa. Na festa de aniversário dos 200 dias de governo, a língua se absteve de anunciar medidas econômicas capazes de atenuar o drama do desemprego, mas reiterou seu plano de cavar para o filho Eduardo Bolsonaro um emprego de embaixador em Washington.

Difícil prever quais serão os próximos lances da guerra que Bolsonaro trava contra a lógica e o bom senso. Por enquanto, a única certeza disponível é a seguinte: a língua do presidente tornou-se líder da oposição.

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