sexta-feira, 10 de março de 2023

As Forças Armadas e a política brasileira

1. Já contei neste espaço que servi no CPOR de Porto Alegre. Foi em 1992, ano do impeachment de Collor, da conferência internacional do clima no Rio de Janeiro e da demarcação das terras Yanomami. No pelotão havia um jornalzinho, eu era um dos editores, e nessas páginas lidas 30 anos depois encontro excertos do pensamento militar médio da época: nós fazíamos entrevistas em que o personagem da edição dava respostas breves, seguras o bastante para não causar problemas com a cúpula do quartel.

Assim, dá para dizer que oficiais da ativa de então - no caso, tenentes e majores que entrevistamos - se sentiam à vontade para falar publicamente de democracia (“é muito boa se funcionar”), ecologia (“importante, mas estão espetacularizando demais”), Amazônia (“eu queria ter o padrinho que os índios têm”). Diante da pergunta “qual o maior problema do Brasil e qual a solução?”, um deles retomou o tema mais sensível nos discursos que passamos o ano ouvindo tristemente, entre faxinas, guardas e sessões de Ordem Unida: “Salário dos militares. Aumento”.

O preâmbulo pessoal não é por acaso. O CPOR é uma espécie de versão resumida das Agulhas Negras, a academia que forma o oficialato brasileiro. No debate sobre a presença fardada excessiva em governos recentes, é na própria mentalidade da caserna - sua autoimagem, seu papel político autoimposto - que está parte dos argumentos. Como lembra o ótimo “Poder camuflado”, do jornalista Fabio Victor (Companhia das Letras, 446 págs.), as Forças Armadas se veem como tutoras da sociedade brasileira desde a fundação da República: às vezes na linha de frente, às vezes nos bastidores, nunca como o que a tradição francesa de tropas profissionais chama de “o grande mudo”.


2. Muita coisa mudou de 1992 para cá. Óbvio que um tenente ou major daquele tempo não representa um general de hoje, com sua experiência de comando em eventos historicamente decisivos - da missão no Haiti (iniciada no governo Lula) à intervenção na segurança do Rio (governo Temer), da relação com ministros da defesa civis (a partir de FHC) aos embates com a Comissão da Verdade (instituída por Dilma e centrada em crimes da ditadura 1964-1985). Mas não surpreende que no geral, e somando o registro do jornalzinho com as minhas lembranças, os militares sigam ligados a temas e juízos que atravessaram décadas: afinal, não houve reforma curricular nas escolas de Exército, Marinha e Aeronáutica, organizações que vivem num mundo à parte, com seus sistemas autônomos de educação, saúde, previdência, justiça.

Nesse contexto, o problema dos salários não é só um detalhe corporativista. Em 1992, o parlamentar que expressava a insatisfação da tropa a respeito era Jair Bolsonaro. Persona non grata no Exército do qual havia sido expulso, proibido de entrar em quartéis para evitar o contato dos soldados com suas ideias extremistas (o que fazia sentido numa realidade analógica), na prática ele personificava a autoestima elevada de uma casta - a mesma que até hoje considera justos institutos como a pensão vitalícia para filhas de oficiais (as do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, por exemplo, ganhavam R$ 15,3 mil por mês cada em 2021).

Um dos pontos altos de “Poder camuflado” é a genealogia dessa relação, cujas arestas foram se aparando com o tempo. Contaram aí episódios particulares, como as pazes feitas entre Bolsonaro e o general que tutelou a transição democrática dos anos 1980, Leônidas Pires Gonçalves, mas algo essencial nunca mudou: a par da forma, os pronunciamentos do então deputado do baixo clero vocalizaram anseios profundos de seus ex-colegas de farda. Questões orçamentárias tiveram peso em momentos de crise com as instituições civis, algo recorrente desde o governo Sarney, e o discurso extremista é só uma forma menos articulada, menos eufemística, de expressar o golpismo que em horas decisivas muitos oficiais superiores brasileiros não hesitaram em considerar.

3. A ascensão bolsonarista é uma história de mão dupla em relação aos militares: quem dobrou quem, e a partir de quando? O anticomunismo histórico da corporação, que durante a Guerra Fria alimentou a ditadura e na democracia virou antipetismo (com toques de udenismo antipolítica), é bastante compatível com o discurso conservador de costumes (igualmente udenista) radicalizado pelo ex-capitão na era das redes sociais. As justificativas a respeito dadas pelos entrevistados de Fabio Victor às vezes soam razoáveis, fundadas num cansaço com os escândalos de corrupção dos governos petistas, mas não resistem aos tantos fatos que as desmentem: entre eles os escândalos do governo Bolsonaro, apoiado pela imensa maioria da caserna até o fim.

Algo parecido ocorre com falas aparentemente legalistas, na boca dos mesmos oficiais que agiram contra a democracia antes e depois de 2018 - o Eduardo Villas Bôas do célebre tuíte contra o STF, o Sérgio Etchegoyen que chamou Lula de covarde na esteira do golpe frustrado do 8/1. Comentando a atuação de Celso Amorim como ministro da Defesa (governo Dilma), o mesmo Etchegoyen explica o que vê como incompatibilidade entre um chefe com origem no Itamaraty e seus então subordinados de farda: “São carreiras com linguagens completamente diferentes (...). É como o general Augusto Heleno uma vez disse: ‘Botaram um presidente do Flamengo para cuidar da torcida do Vasco.’”

Involuntariamente, a comparação acaba sintetizando a tragédia que vivemos hoje. Porque a linguagem da diplomacia é a que reproduz os fundamentos da política: o entendimento sobre a necessidade da negociação, a leitura conjuntural (interna, externa) feita a partir de debates abertos com a sociedade (sem constrangimentos hierárquicos, sem confundir adversários com inimigos). A ausência de autocrítica em relação ao que aconteceu nos anos 1960/70, um dos combustíveis da radicalização fardada na época da Comissão da Verdade, não deixa de ser decorrência desse abismo cultural: Exército, Marinha e Aeronáutica só teriam a ganhar com o próprio arejamento, em vez de seguir presos a dogmas superados pela historiografia séria, a crimes cometidos por uma geração que em bom número já morreu.

Na pequena escala do CPOR, era comum fazermos piada com a pretensão militar de querer ditar os rumos do país, já que nosso dia a dia numa de suas instituições de ensino superior era um contínuo de obtusidade, de mandonismo baseado em regras cujas justificativas eram elas mesmas. Nunca esse modo de pensar e agir foi tão escancarado como no período Bolsonaro. O resultado, que foi do catastrófico ao patético em casos como o de Eduardo Pazuello à frente da Saúde durante a pandemia, está aí para nos lembrar do que não foi feito - e quem sabe ainda possa sê-lo - para a democracia enfim calar a grande tagarelice.

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