segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

A grande tarefa dos democratas será refazer o Brasil

Antonioni já era um grande mito do cinema, quando o conheci em Roma. Depois de alguns encontros casuais acabei convidado a ir à sua casa, jogar conversa fora. Lá, achei que conheceria Monica Vitti, já pelo fim de um casamento que produzira, além de felicidade conjugal, um dos mais extraordinários ciclos do cinema moderno europeu: “Aventura”, “A noite” e “O eclipse”. Depois, Antonioni apareceu pelo Brasil no início dos anos 2000 com uma nova e jovem mulher, e jantou uma noite em minha casa, quando lhe apresentei a Caetano Veloso e mostramos suas canções a ele.

Em Roma, eu havia me perturbado com a ausência de Monica Vitti na conversa. Como não tinha intimidade para perguntar por ela, esperei fingindo desinteresse. Finalmente, ela foi buscar alguma coisa na sala, acho que um cinzeiro. A cabeça sempre baixa, Monica Vitti entrou e saiu do cômodo sem olhar e muito menos falar com ninguém.

Nunca mais a vi e Antonioni acabou morrendo em 2007, aos 94 anos de idade. Ele ainda defendeu, num Festival de Veneza, o filme mal compreendido de Glauber Rocha, “A idade da Terra”, de 1980. Separada de Michelangelo, Monica Vitti se casara com Roberto Russo, também cineasta, na companhia de quem viveu o resto de sua vida, morrendo essa semana vitima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC) agravado pelo Mal de Alzheimer. Ou vice versa, não sei.


Claro que Bolsonaro não vai manifestar nenhum sentimento pela passagem da grande atriz. Assim como não havia se manifestado por ocasião do desaparecimento de tantos brasileiros inesquecíveis desde Aldir Blanc, nessa maldição do vírus que nos consome e do insensível negacionismo genocida do poder público. O Brasil, de quem sempre se enalteceu a cordialidade, que foi sempre o país dos que sabem rir de tudo, talvez esteja usando o horror desses tempos para revelar a fragilidade da versão. A pressão da pandemia nega a confirmação de valores “humanistas”, a favor de um arranjo mal equilibrado entre “bem” e “mal”, considerando as circunstâncias como razão primeira de nosso comportamento.

Para nós, que sempre tivemos prazer em divulgar o caráter carnavalesco do país, são dolorosas a perseguição e a censura social a sambas e marchinhas que reproduzem nossa cultura de uma época. Sempre curtimos essas canções, deixando o comportamento social do passado no passado, como lembrança do que o mundo já foi. Shakespeare, Dostoiévski, Proust, essa gente já cometeu esses mesmos enganos, sem que fôssemos obrigados a cancelar peças, romances, poemas. Hoje, eu não deixaria de cantar nunca que “o teu cabelo não nega”, “qual é o pente que te penteia”, “branco é branco, preto é preto, mas a mulata é a tal”, esses elogios enviesados, tão avançados em comparação ao resto do mundo.

O que não podemos admitir é o que três maloqueiros acabam de fazer com o filho de refugiados congoleses, num quiosque na Barra da Tijuca. Não há o que possa justificar punição como essa, mesmo que Moïse estivesse em busca de uma cerveja ou qualquer outro produto a que ele não tinha direito, como declaram os acusados. Cada paulada das que vimos na televisão bateu em nossas costas, cabeças e corpos, admitindo que há tempos não somos mais o país do carnaval e da cordialidade.

Está certo, nem tudo é culpa de Bolsonaro. Mas foi seu governo de violência, bagunça agressiva e restrições que preparou esse pesadelo. Nas eleições desse ano, vamos afastá-lo de onde se encontra. Mas levaremos muito tempo para recolocar o Brasil no rumo que lhe cabe, carnavalesco e cordial. A grande tarefa dos democratas brasileiros será a de fazer superar esse mau sonho e se preparar para refazer o que eles destruíram — refazer o Brasil para que possamos mudá-lo, em direção ao espírito dos costumes e do comportamento com que nossas canções sempre sonharam.

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