quarta-feira, 25 de março de 2020

De Leila Diniz, 75 anos, para Bolsonaro: "(.)"

Bolsonaro, em sua ignorância aos grandes nomes da pátria, desconhecedor confesso de Tom Jobim e João Gilberto, não deve ter noção de quem foi Leila Diniz (1945-1972), a primeira grande estrela das novelas da Globo. Ela faria 75 anos neste 25 de março. Lá do alto, no entanto, em sua nuvem de plumas e paetês, ela manda dizer que sabe muito bem o que o presidente fez no verão passado. Hoje de manhã, estupefata depois de ter visto o discurso da excelência na televisão, mandou um e-mail que aqui vai em primeira, e besuntada de álcool gel, mão.

“Meu desprezível Bozo, não pergunte pra Damares quem sou eu. Ela deve me achar um mau exemplo de mulher, o avesso desse negócio de abstinência sexual e virgindade que ela prega do alto da goiabeira dela. Eu sou aquela que preferia trepar no coqueiro e tirar coco. Eu, grávida, ia à praia sem aquela bata que cobria a barriga. Me cuspiram na cara em Ipanema. Sofri o diabo por querer fazer o que quisesse, sem prestar contas aos que não quisessem. Me chamavam de (*) e feminista. Eu não era uma coisa nem outra. Queria ser livre, fazer o que me desse na telha. Uma vez, diante de um empresário assediador, que queria me comer de qualquer jeito, eu cansei de ser gentil e repetir dúzias de desculpas. O cara não entendia, oferecia grana, joias, o (*) a quatro. Uma noite, (*) da vida com a boneca aqui que só dizia não, ele escrotizou de vez. Disse que eu dava para todo mundo. Foi aí que eu precisei ser sincera, herança maior que meu pai, membro do partido comunista, me deixou: “É verdade, eu dou pra todo mundo, sim, mas não dou pra qualquer um”. O cara parou de me encher o saco.

Estou escrevendo, Bozo, porque eu estava aí, no auge da carreira, estrelinha de novela, quando o pau quebrou. Os militares fecharam o Congresso e milhares de intelectuais, estudantes, políticos, sindicalistas, foram postos em quarentena nas prisões. O vírus da época era a ditadura. Eu vi o filme que te inspira, meu caro, sei muito bem o que você fez no verão passado e o que você está ensaiando repetir. Sofri na pele com os teus ídolos. Em 69, meia dúzia de meses depois do AI-5, dei uma entrevista prum pasquim aí do Rio. Nada que outras mulheres já não estivessem dizendo e vivendo em Ipanema, na PUC, mas em jornal era novidade. Zero de política. Não mandei a gurilada tomar onde quer que fosse. Eu queria apenas a liberdade de viver do meu jeito. Disse, por exemplo, que podia ser feliz com um homem e ir pra cama com outro. Que não estava casada, que na minha cama passavam uma noite e eu mandava embora.

Foi no tempo em que mulher não falava palavrão, e eu falava todos. Tudo mais suave que esses que você diz hoje pros jornalistas. Os caras do pasquim, quando publicaram a entrevista, no lugar dos palavrões colocaram asteriscos. A (*) ficou pior ainda. Deu a maior (*). As feministas e a esquerda me acharam uma (*) por estar falando em sexo numa hora daquelas. A família católica me chamou de (*). A milicada me achou uma (*) perigosa. Perdi todos os contratos, precisei abrir uma loja de roupa indiana na General Osório, e só voltei a trabalhar na televisão depois que assinei um documento no DOPS. Nele eu me comprometia com a polícia a nunca mais falar palavrão na televisão e em entrevista. Foi (*).

Hoje é meu aniversário, Bozo. A Elis Regina já me mandou um beijo, e eu devia estar comemorando na nuvem da Elke Maravilha. Estou passando aqui para mandar um (*) básico e dizer, meu caro, que vi o teu discurso na televisão ontem. Assustador. Parecia a cena de um filme que fiz com o Nelson Pereira, o “Azyllo muito louco”. É baseado num conto do Machado de Assis (já te ouço perguntando, “quem?”). É a história de um sujeito que interna toda a cidade num hospício, todos suspeitos de loucura, e no final acaba sozinho lá dentro porque, evidentemente, o louco era ele. Acho o filme a tua cara, Bozo, e com isso me despeço. Está dispensado de me dar os parabéns. Fica aí com o teu vírus e receba daqui o meu mais estridente panelaço."

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