segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A democracia vai autodestruir-se em 3, 2…

Bernard Bouton
Escrevo este texto horas após Donald Trump ter comunicado pelo Twitter uma espécie de retirada, dando início ao processo de passagem de testemunho na Presidência, sem ainda assim conceder na sua derrota. Há quatro anos, por esta altura, estava a refazer-me do choque da eleição desta figura, com todo o simbolismo de decadência civilizacional que acarretava. Achava na altura que quando Trump estivesse de saída da Casa Branca, quatro ou oito anos depois, estaria a celebrar esse dia como uma salutar vitória da democracia, que tinha assim evitado a sua autodestruição. Infelizmente, não estou. Registo a notícia, encolho os ombros e continuo de sobrolho franzido e com cenários sombrios na cabeça. Temo o que aí vem. Temo os sinais que nos chegam de todos os lados. Se me dissessem há uma década que estaria hoje a dizer isto, não acreditaria.

Não é só Trump e o espetáculo decadente de um homem sem qualidades a recusar-se a aceitar a sua derrota. Não são só as mentiras e as manobras sórdidas, o egoísmo no seu expoente máximo no poder. Tudo isso acabará, felizmente, em breve. É o legado que Trump deixa, as caixas de Pandora que abriu, o indizível que pronunciou, as covas fundas que cavou, os exemplos que inspirou. Há 73 milhões de americanos que depositaram a sua confiança num ser humano desprezível, que se deixaram enlear em loucas teorias da conspiração, que são incapazes de distinguir factos de alucinações, e para quem os valores da igualdade, da justiça social, da compaixão, não importam nada. Há 70% de republicanos que não acreditam que estas eleições foram livres e justas. A semente está lançada. Onde houver um populista no mundo, as eleições a partir de agora nunca mais serão iguais. Acusações de fraude infundadas, desrespeito pelas instituições e pelo mais nobre ato de expressão da vontade popular serão constantes mesmo em democracias sólidas.

Trump não é a causa de todos os males do mundo, naturalmente. É apenas fruto podre de uma época e das suas condições, expressão máxima de uma tempestade perfeita de forças que confluem para aquela que é a maior ameaça para a ordem mundial e para o valor da liberdade desde a Segunda Guerra Mundial. A causa está na tecnologia que libertou novamente os piores fantasmas da natureza humana, que o Homem pensava ter enterrado com a civilidade e a democracia. Os homens são capazes do melhor, mas também do pior quando entregues a si próprios, aos seus medos e angústias, ao seu inato egoísmo. Sobretudo quando a vida não lhes corre bem, quando a crise agudiza, quando as soluções que lhes apresentam são gastas e pouco convincentes, quando a sua saúde e o seu conforto estão ameaçados. O Homem tanto quer, que se arrisca a tudo perder. Já vimos isto acontecer antes, e não foi bonito de se ver. Parece que estou a imaginar Thomas Hobbes, com o seu Leviatã debaixo do braço, a dizer “Eu bem avisei!” ao crente e bem-intencionado Jean-Jacques Rousseau. Acreditar na natureza intrinsecamente boa do ser humano é uma tarefa cada vez mais difícil quando mergulhamos no submundo de ódio e mentiras em que se transformaram as redes sociais. Quando percebemos que há tanta gente que prefere acreditar em qualquer coisa, menos na ciência, nos médicos e nos jornalistas. E quando olhamos para as forças políticas que crescem banhadas neste caldo de ressentimento, angústia e ignorância.

Se olharmos para a democracia como um grande ecossistema natural que se autorregula, podemos tentar acreditar que, depois de as pessoas provarem a água e não gostarem, o bem, a decência e a civilidade acabarão sempre por vencer. O problema é que os humanos são peritos a destruir ecossistemas antes considerados indestrutíveis, como se vê pelo que fizemos ao nosso planeta. Anne Applebaum explicou bem o fracasso da política e o apelo sedutor dos totalitarismos no livro O Crepúsculo da Democracia, em que, tomando os maus exemplos da História, do estalinismo à Alemanha nazi, analisa os movimentos populistas atuais pelo mundo, passando por Boris Johnson ao desmantelar do Estado de Direito na Polónia, na Hungria ou no Brasil. Não chegou a Portugal, mas teria bom material para se entreter. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, em Como Morrem as Democracias, também mostraram como, no século XXI, elas não finam com uma revolução armada: morrem devagarinho, com pezinhos de lã, avanço aqui, cedência acoli, fechar de olhos acolá.

Estarei enganada, a ser pessimista? Nunca desejei tão ardentemente que sim. Não me saem da cabeça as palavras de Benjamin Ferencz, o último procurador vivo dos Julgamentos de Nuremberga, com quem falei há três semanas: “Para que o mal vença, só é preciso que os bons não façam nada.” Eu sei, tenho a certeza, de que lado vou estar. Sou bastante pragmática, mas estarei sempre do lado do humanismo, dos valores e dos princípios que tenho por inegociáveis e inalienáveis. Só é pena que cada vez mais gente, sobretudo gente com responsabilidades políticas, não saiba.

Nenhum comentário:

Postar um comentário