sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Lá como cá

Em seu discurso na ONU, Bolsonaro foi ele mesmo. Em tom quase belicoso confirmou, com orgulho, os desacertos das suas políticas internas e externas. Mais um constrangimento que se junta à lista que marca sua presidência. A lista é longa e ampla nos temas, do desrespeito aos direitos humanos à negação da ciência, o festival é assustador. A começar pelo pouco apreço à vida dos seus “inimigos” – dos esquerdistas aos presos comuns –, refletido nas suas homenagens a ditadores e torturadores, e o aplauso à degola em presídios.



Bolsonaro transforma em inimigos todos que divergem de suas convicções. Há limitação à liberdade de expressão, abandono do compromisso com um estado laico e demonização da mídia, nacional e internacional. Revela enorme preconceito com sua obsessão com homossexualidade e questões de gênero. Na cultura, ele ignora artistas reconhecidos, como fez com o prêmio Camões dado a Chico Buarque, ou na indiferença com a morte de João Gilberto. Como o exemplo vem de cima, o diretor da Funarte se sentiu à vontade para ofender Fernanda Montenegro. Na sua visão, os comunistas estão por todos os lados, crescendo de forma inversamente proporcional à piora da avaliação do governo.

O presidente vai radicalizando no discurso autoritário, se recolhendo ao grupo que, quase religiosamente, ainda o apoia. Aos amigos, tudo. Cargos são distribuídos sem critério além da fidelidade absoluta, gerando o que se vê na condução dos Ministérios da Educação, Relações Exteriores e Meio Ambiente. Para a família não há limites. A ocupação do governo com pautas pessoais é evidente. A intervenção nos órgãos de fiscalização, como Coaf, Receita e PGR, ou a tentativa de afastar o diretor-geral da Polícia Federal, foram feitas quando tais instituições chegaram próximas dos seus. Não enrubesceu ao indicar o filho como embaixador, apesar do seu despreparo, confirmado pelas rotineiras postagens nas redes sociais.

O terraplanismo domina ações públicas implementadas com base em achismos. Bolsonaro acaba, numa canetada, com anos de experiência acumulada em diversas áreas, como o uso da cadeirinha para crianças nos carros e os ataques ao Inpe. E o Brasil vai virando piada, isolado e retirado dos debates mais relevantes na economia mundial, do acordo UE-Mercosul à Cúpula do Clima na ONU. Seu discurso reforçou esse caminho.

O obscurantismo das ideias do presidente poderia ser apenas tema de paródias, se ele fosse uma rainha da Inglaterra. O tratamento dispensado a quem dele discorda é grave. Ameaças explícitas ou veladas levam à autocensura em diversas instituições, consequência do um instinto de preservação, ou covardia, de alguns funcionários públicos. Ninguém escapa, nem mesmo o alto escalão ministerial, como mostra a passividade dos ministros Moro e Guedes às intervenções nas suas áreas. Essa censura silenciosa que afeta a Receita Federal ou a cultura, em tão pouco tempo de governo, é um retrocesso democrático claro. Calar a divergência, a crítica, o debate é o caminho para o autoritarismo.

Há quem ainda argumente que uma suposta agenda econômica liberal compense tudo isso. Esse discurso não faz sentido algum. A economia vai mal, com crescimento medíocre e desemprego elevado. O Executivo está confuso e inoperante. A reforma da Previdência só andou porque a Câmara assumiu o protagonismo, como vem fazendo com a reforma tributária.

A abertura comercial não veio e se resume a concessões de ex-tarifários, regime em que a redução de tarifas se aplica a bens sem produção nacional, e é continuidade de uma política que até Dilma praticava. A privatização não existe para além do anúncio de uma lista tímida de empresas. A reforma do Estado até o momento é um conjunto de ideias colocadas de forma desorganizada na mídia. O novo pacto federativo é um mistério a ser desvendado.

Tendo entregue bem menos do que prometeu, nem mesmo Guedes está protegido dos humores de Bolsonaro, que anda impaciente com a falta de recursos para investir. Foi obrigado a demitir Marcos Cintra por conta da CPMF, tributo de seu gosto e que, aliás, continua defendendo. As promessas já não encontram o mesmo eco na sociedade. Como o menino pastor que gritava lobo, a credibilidade vai sendo perdida.

Ainda que a economia estivesse indo de vento em popa, e uma agenda verdadeiramente liberal estivesse em curso, nada justifica ignorar os arroubos autoritários de Bolsonaro. Sem democracia não há liberalismo, que é muito mais que uma receita econômica. Não existe a separação entre economia e o resto. O chamado milagre econômico dos anos militares, que terminou com hiperinflação e a pior distribuição de renda do mundo, não apaga as monstruosidades cometidas, nem justifica o AI-5, como querem alguns.

Um comentário:

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