A fábula relata uma excepcionalidade, um processo de mudança cultural. As aranhas têm uma língua e, tanto quanto o Brasil, aceitam o republicanismo para descobrir que as demandas da República têm em seu sistema eleitoral uma degradável impessoalidade. Uma imparcialidade que nos torna anônimos e iguais perante a lei. Aranhas e nós, porém, temos reservas quanto a esse princípio contrário a práticas sociais hierarquicamente orientadas, mas enterradas em nosso inconsciente, exceto quando colocamos alguém no seu devido lugar com o “você sabe com quem está falando?”.
A igualdade como valor destoa da reciprocidade revelada por Marcel Mauss, que obriga a fazer e a devolver o favor que, ao lado do jeitinho (caseiro ou legalmente supremo), coloca as ideias nos seus lugares. Esses são os costumes não convidados que trazem de volta a “velha política”. O sistema em que Bolsonaro foi eleito para liquidar. E que hoje o leva a pensar no golpe que destampa a teia de uma aristocracia estatizada.
A comunidade das aranhas também sofre de um claro antietnocentrismo. Inventada por seus onipotentes intelectuais, a pátria das aranhas não percebe as gradações, privilégios e castas de sua ordem social. A incongruência entre o regime político e os costumes promove um rodriguiano complexo de vira-lata — esse sintoma de uma inferioridade estrutural diante de estrangeiros “adiantados” e “civilizados”.
Por isso as aranhas mais sensíveis pedem ao Cônego Vargas — aquele humano a elas simpático que, como um etnólogo, aprendeu sua língua e admirou suas teias — um regime político. Visto como um demiurgo, algo comum nos encontros entre povos com grandes diferenças de poder, esses contatos que conduzem à escravidão e ao colonialismo, o honesto Cônego não hesitou em sugerir o sistema da Sereníssima República de Veneza, o menos sujeito às imobilidades das heranças e casas aristocráticas, o que contém um mecanismo de mudança e aprimoramento.
Adotando o regime republicano, logo as melhores moças da coletividade teceram os sacos de onde sairia o nome de um dos eventuais candidatos. Elas foram chamadas de “mães da república”, informação reveladora de que a “política”, como a religião, o ensino, o jogo, o esporte ou o trânsito, não entram em espaços vazios porque não há nenhuma sociedade com espaços sem significado.
O resultado, depois de algumas eleições, foi decepcionante. Sem serem capazes de enxergar as implicações e o protagonismo social de seus próprios costumes, as aranhas logo descobriram seus malandros e seus golpistas. A disputa eleitoral, ao lado do negacionismo do poder de seus estilos estabelecidos de prestígio de poder, fez com que as aranhas de Machado de Assis até hoje urdam e desmanchem suas sacolas eleitorais e, como Penélope, aguardem seu Ulisses — uma enorme paciência e ao lado de uma velha sabedoria.
O preço do autodesconhecimento é a repetição que conduz à ausência de história e de mudança. Pensar que se podem controlar costumes ou, mais ingênuo que isso, ignorar que, depois de Dom João VI, tivemos um Pedro Zero Um e Pedro Zero Dois e alguns mandachuvas é — no limite da estupidez — desejar não mudar. É voltar ao autoritarismo aristocrático disfarçado de “estados novos” podres de velhos, mostrando a saudade das dita-duras.
A miragem nacional denunciada por Machado de Assis é que o republicanismo não é um mecanismo formalista isolado, pois todo regime é contaminado pelo conjunto dos costumes da sociedade de que faz parte.
Impossível mudar? Claro que não. O ponto é ter consciência de que todo processo de mudança tem miragens e exige paciência com o velho e energia para implementar o novo.
PS: Todo golpe troca teias por grades. Faz parte dos golpes o patético “botar os tanques na rua”, essas armas do puro poder, poluidoras da vida dos que apenas desejam viver em paz sem abdicar de seu direito de construir suas teias. Esse valor que a maluquice de um presidente aliado da morte não pode abolir.
Roberto DaMatta
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