quarta-feira, 18 de agosto de 2021

O drama afegão e a tragicomédia brasileira

Era noite de domingo. Redes de televisão de todo o mundo divulgavam imagens da chegada dos talibãs a Cabul. Vinte anos depois da invasão americana, lá estavam eles de novo, com suas barbas longas e suas metralhadoras penduradas nos ombros. Como se nada tivesse acontecido.

As telas estavam tomadas por comentários de especialistas e entrevistas com mulheres afegãs, que se preparavam para mais uma longa temporada sob pesadas vestimentas tradicionais e longe das escolas e dos locais de trabalho.

A marcha até Cabul havia sido muito mais rápida do que imaginavam as autoridades locais e os militares americanos, que empreendiam esforços de última hora para retirar do país seus aliados e estrangeiros que ainda estavam na cidade.

O presidente afegão, Ashraf Ghani, se foi, provavelmente a bordo de um helicóptero. Teve tempo de um breve comunicado: “eles venceram”. A partir daí, multidões correram para o aeroporto de Cabul, adivinhando o inferno que teriam de enfrentar se permanecessem no país.

As cenas dessas multidões também ganharam o mundo. Pessoas desesperadas se agarrando a aviões americanos, implorando um lugar a bordo. No palácio presidencial, os talibãs prometiam moderação. Quem terá acreditado?

Ao mesmo tempo que as emissoras de televisão mostravam cenas das tropas talibãs chegando à capital do Afeganistão, circulavam nas redes sociais brasileiras ameaças de invasão de outra capital, a 13.400 quilômetros de distância.


As ameaças vinham da voz de um cantor sertanejo, Sérgio Reis, e de atores coadjuvantes em um roteiro que se torna cada vez mais familiar aos brasileiros: a ameaça da tomada de Brasília por militantes bolsonaristas.

“O Brasil inteiro vai estar parado”, prometeu Reis, ao convocar caminhoneiros para uma grande manifestação na primeira semana de setembro. “Ninguém trafega, ninguém sai. Ônibus volta para trás com passageiros. Só vai passar Polícia Federal, ambulância, bombeiro e cargas perecíveis. Fora isso, ninguém anda no Brasil”.

As organizações representativas dos caminhoneiros se apressaram a negar participação em qualquer movimentação política. Mas é fácil lembrar o que ocorreu da última vez que eles fecharam as estradas. E a convocação de Reis circulou por todo o país.

E qual seria o objetivo da grande manifestação? Segundo mensagens que circularam por WhatsApp, os participantes do movimento exigiriam do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o impeachment de dois ministros do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Caso contrário, Jair Bolsonaro partiria para a segunda etapa: o golpe.

De tão estapafúrdio, o roteiro não foi levado muito a sério. Mas tratando-se de quem se trata, de apoiadores de quem não esconde as simpatias por uma aventura política, é sempre prudente estar atento. Isolar Brasília seria o plano. E depois?

Dos talibãs já se sabe o que esperar. Um novo governo tão ou mais obscurantista que o de duas décadas atrás. Depois de vencer governos mantidos por tropas soviéticas e americanas, por que fariam diferente?

A mesma união entre uma interpretação belicosa dos textos islâmicos e a aplicação implacável de regras sociais – especialmente em relação às mulheres. Acompanhada, é claro, de uma postura isolacionista e autossuficiente na política internacional.

Os principais órgãos de imprensa ocidental já iniciaram um grande exercício de busca de culpados pelo retrocesso que se espera para o Afeganistão. O primeiro na linha de tiro é o presidente Joe Biden, a quem coube a decisão de retirar as tropas americanas do país.

Essa espécie de mea culpa ocidental tende a manter o tema nas manchetes pelo menos por algumas semanas. Além disso, a própria posição geográfica do país e as possíveis influências que um governo talibã pode vir a exercer na região motivam preocupações não só das potências ocidentais, mas também da China e da Rússia.

E dos nossos rebeldes bolsonaristas, o que se pode esperar? Eles não têm armas, como os talibãs, mas namoram quem as têm – as Forças Armadas e as polícias militares. Se o flerte será bem acolhido, ninguém se arrisca a dizer com certeza. As notas oficiais juram que não.

Eles também não iriam tão longe a ponto de decepar cabeças de rebeldes ou de proibir meninas e mulheres de estudar e trabalhar. As longas barbas tampouco lhes cairiam bem. Poderiam lembrar hippies contestadores das regras mais conservadoras.

O amor às armas, porém, é semelhante. A postura conservadora na pauta de costumes também. Assim como a tentação autoritária. As coreografias da campanha de 2018 já se inspiravam em movimentos de combate. O começo do atual mandato foi acompanhado pela propaganda ostensiva de uma intervenção militar.

As reivindicações mudaram, de certa forma, para permanecer as mesmas. A defesa do voto impresso, por exemplo, já foi programada para servir de argumento na hora de contestar resultados eleitorais negativos.

E a mais recente bandeira, o pedido de impeachment de dois ministros que ousaram enfrentar os delírios golpistas de simpatizantes do atual presidente, indica a intenção de elevar a temperatura do embate com o Poder Judiciário.

A marcha para Brasília, ameaça de um cantor e sonho dos rebeldes da direita tupiniquim, tem sido assim, cheia de avanços e recuos, como testes repetitivos da resistência à tentação autoritária. “Até onde irão?”, pergunta-se com frequência.

Provavelmente a lugar nenhum. O que se pode esperar com certeza é muito barulho. As ondas de protestos da extrema direita ainda vão assombrar o país por um bom tempo. E devem chamar a atenção da imprensa internacional. Mas deverão ter outro tratamento dos principais meios de comunicação globais.

A queda de Cabul entristeceu o mundo pelo anúncio de um novo tempo de retrocesso no Afeganistão. A planejada marcha para Brasília soará como mais um capítulo de uma tragicomédia cujo enredo tem como marca principal o isolamento internacional do Brasil.

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