quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Receita para uma canção de escárnio

Uma maioria parlamentar fisiológica e voraz; a caneta presidencial que quase tudo pode e tudo faz para saciá-la; um presidente disposto a usá-la e usando-a sem escrúpulos. Uma Corte, majoritariamente condescendente. Camisas amarelas que voltam ao armário, satisfeitas com o ''Tchau'' que deram à ''Querida!'' e ou acomodadas ao fiasco resultante do impeachment. A sociedade, no geral, bestializada, apática, sem esperança. Lideranças políticas decadentes; um país pouco exigente: ingredientes para fazer uma canção de escárnio.

A não ser que os fatos ocorram de modo muito — mas, muito — surpreendente, o resultado da votação da denúncia do Ministério Público contra o presidente Michel Temer está dado: o arquivamento. Segundo o jornal O Globo, foram consumidos pelo menos R$ 12 bilhões — entre liberação de emendas, frustração de Receitas com o Refis, desistência de privatizações e a anistia de multas ambientais. 12 BI — culpa também do PT que banalizou o BILHÃO. E há concessões não quantificáveis, como a portaria do trabalho escravo — uma modernização, se comparada à idade média.

E não bastasse isso, a bofetada perene daquilo que se sabe e tudo o que se viu: malas destrambelhadas pelas ruas, escancaradas em apartamentos; parceiros de ontem, chamados canalhas de hoje. A desfaçatez, o desdém; o pouco rigor de quem, ontem, era rígido e exigente e hoje é só tangente.

Não se trata de justificar a volta de Dilma — essa vil desqualificação de argumentos já não cola. É apenas o direito que se lamente a morte da coerência, que se foi na corrente desse rio de lavar as mãos de tanta gente. O escárnio é tanto que dá para compor um versinho infame, uma cantiga de maldizer:
O presidente e sua base,
Heróis de antanho.
Figuras menores,
De baixo tamanho.
Vilões de opereta:
Homens de Estado
Profissionais da mutreta?
E há para quem tudo isso seja normal; coisa pouca, natural da política. O conceito de política que se carrega diz muito a respeito do caráter que se ostenta. Mas, caráter à parte — como se fosse possível — a questão é até mais comezinha: não se percebe que economia assim não se sustenta; que a credibilidade é base das instituições e a qualidade das instituições, o alicerce de qualquer economia.

E como se economia apenas bastasse… E como se a economia, agora, voasse… E como se o Estado e sua crise desaparecessem; e tudo, depois de esmaecer, acordasse em cores vivas, mistura de amarelo, verde e pink. Como se a sociedade fosse muito bem; a educação, a saúde, a segurança e o bem-estar prosperassem. E o cardápio eleitoral estivesse recheado dos mais saborosos quitutes… Que sonho idílico é esse que se sonha em meio ao pesadelo?

Mesmo para quem acompanha política, há anos, de nariz tapado, o odor é insuportável. Impregna na alma, na autoestima; fica nas unhas, esconde-se nas dobras e debaixo da pele. Aniquila a mais básica noção de identidade; imagem que não resiste ao espelho. Feita assim desse barro, a continuidade do mandato de Michel Temer é uma casa de palha onde não se abrigara país nenhum. Dessa matéria, não haverá país algum. Só esse nó e essa desfaçatez, diante da melodia de uma canção de escárnio.

Carlos Melo 

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