Mas tudo depende do contexto, senão casar num palco seria um casamento “de verdade”. Mas, em certos momentos, o elo entre o falar e o fazer nivela as distâncias. Falar de sexo é em, certas situações, fazer sexo. Do mesmo modo, os sacrilégio assustam.
Romualdo Flores, católico fervoroso e amigo do coração, ficava chocado ao ouvir as blasfêmias espanholas de Manolo Rivera, um pensador com quem debatemos conflitos intestinos que iam das guerras civis ao soturno incesto da corrupção federalizada num seminário internacional sobre a calúnia realizado em Santander, Espanha.
A calúnia faz com a que o absurdo abafe a verdade. Ela promove a dúvida. “Eu sabia...”, diz o lado maldoso do seu coração ao ouvir a aleivosia. Anunciada com veemência, ela intriga porque, como a propaganda, muitos precisam da mentira e do absurdo. Ademais, tudo o que é impresso ou pronunciado em voz empolada ganha um viés de veracidade. Recentemente, um conhecido foi caluniado, e logo descobri que a aleivosia tinha a capacidade de parir um monte de dúvidas. Como o caluniado era velho e honesto, não era sicofanta e dizia o que pensava, não teria ele realmente cometido o crime denunciado pelo caluniador? Quem, afinal seria o f.d.p — o caluniador ou a vítima? Eis o absurdo que faz com que a calúnia “pegue”. Dizer num solene manifesto que é uma injustiça prender os ladrões do petrolão promove a dúvida que até hoje fratura o território que divide bandidos bilionários enriquecidos pelo assalto às instituições públicas, cujas penas deveriam ser o dobro das de desdentados ladrões de galinha.
Jogar com o oposto de um caráter ou reputação é um elemento perturbador, pois equivale a arrancar uma máscara. O puritano santimonioso é revelado como um pedófilo; um professor de antropologia é denunciado como preconceituoso. Nada foi mais chocante para alguns meninos da minha geração do que descobrir a sexualidade do pais, sobretudo da mãe, cujo nome era sagrado.
Daí o mal-estar das reversões morais quando projetos de melhorar o mundo são profanados. A verdade nua e crua — que obriga o mais covarde a tomar uma atitude — produz um efeito semelhante ao da calúnia: essa hipermentira. Prender ladrões do bem comum é como condenar um pai comprovadamente incestuoso. O autorroubo ou a autossabotagem é a negação que tipifica o bandido-político e o neurótico clássico estudado e desvendado por Freud. Qual é a lógica por trás de governantes que batem a carteira do povo que governam?
Se os papéis públicos exigem coerência, como resolver essa multidão de atos desonestos que assolam o país? Um pensador com mais inteligência do que o malogrado cronista diria que essa desonestidade tem, de um lado, um laço profundo com o gigantismo centralizador das esferas de poder; e, do outro, a fé ou a crença em formulas que resolveriam o Brasil. A crença não depende de experiência. Muito pelo contrário, quanto mais ela é rechaçada pelos fatos e pela vida, mais nela se deve acreditar. O crítico absoluto dos outros é um sujeito perdido no labirinto da sua arrogância. Como o soldado que marcha de passo errado.
“Deixa comigo”, dizem as crenças e os amigos de fé dos logros que promovem uma potente solidariedade. Num plano menos visível, porém, o “deixa comigo” é a devolução de um favor. Trata-se do fechamento de um ciclo de reciprocidades que filtram permanentemente valores e ideais. Se os ideais exigem uma sincera e difícil impessoalidade, o favor dos “deixa comigo” tudo perdoa em nome dos companheiros a quem se deve a devolução de um gesto de simpatia na forma de alguns milhões de dólares.
Volto ao começo.
O “deixa comigo” é primo da impunidade. Afinal, tudo passa, e o povo, também sem memória, esquece.
— Acertamos na mosca comprando uma refinaria superfaturada.
— Mas, e se descobrirem?
— Não vão descobrir.
— Mas... e se descobrirem?
— Estamos juntos e cobertos pelo gabinete. Ademais, temos os ritos do processo.
PS: o que diz “deixa comigo” está livre, leve e solto. Acaba de chegar de Miami cheio de lembrancinhas para a família. Já o preocupado passa uma temporada na Papuda, lendo a Bíblia.
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