Os brasileiros progressistas e bondosos decidiram proteger Dilma Rousseff de um golpe. Com toda a bravura cívica necessária hoje para lutar pelo poder do Partido dos Trabalhadores, resolveram reeditar a cadeia da legalidade — o movimento em defesa de Jango contra os militares. Para essa nova versão, será preciso apenas dar uma checada na lotação da Papuda. Cada tempo com sua cadeia.
O paralelo com Jango é muito útil, porque ressuscita os arquétipos da direita malévola (milicos, polícia, yankees) contra os da esquerda heroica e solidária. Sem querer estragar o conto de fadas, o paralelo mais correto para Dilma seria com Collor — ainda assim injusto: o Esquema PC era um anexo do governo; o Esquema PT é o coração.
Mas dá-se um jeito em tudo: Dilma Rousseff, a representante legal (sic) do maior assalto da República, virou vítima de um golpe de Eduardo Cunha. O pedido de impeachment foi feito pelo respeitável doutor Hélio Bicudo, mas esse tipo de detalhe só serve para atrapalhar a narrativa progressista.
Outro fato que não interessa a ninguém é que o crime de responsabilidade apontado no pedido é só uma fração da história: a vítima levou 50 tiros de fuzil, e a pedalada fiscal foi o chute no traseiro. Mas foi o Cunha quem autorizou a investigação do criminoso. Golpe.
O que ameaça a democracia brasileira neste momento são as represálias de Eduardo Cunha contra o governo do PT, que não fez nada de mais: só regeu um esquema de assalto ao Estado para enriquecer o partido — e assim financiar eleições, aliados fiéis, votos no Congresso, imprensa de aluguel (que reproduzirá este artigo tomada de indignação progressista) e bons advogados para defender as trampolinagens dos guerreiros do povo brasileiro. Enfim, coisas que todo mundo faz.
O mensalão e o petrolão não levaram Dilma e Lula ao banco dos réus porque este é um país sério, que está ocupado bloqueando o WhatsApp.
Pois bem: enquanto a corrente da bondade lutava contra o golpe do Cunha, deu-se o golpe da Dilma. Numa manobra tipicamente republicana, que só um país capaz de bloquear o WhatsApp com uma canetada de São Bernardo do Campo sabe realizar, o Supremo Tribunal companheiro enfiou seu bisturi no Poder Legislativo (com todo o carinho) e operou o processo do impeachment.
Com a habitual coreografia de interpretações providenciais, decidiu até como se elege uma comissão de deputados para analisar o impedimento da companheira presidenta — seguindo o mais elevado preceito constitucional de melar o quadro que estava feio para ela.
O ministro Gilmar Mendes disse que esse STF é bolivariano. Maldade dele. Esse STF é valente. Repare só: três semanas antes, a Corte autorizou a prisão do líder do governo no Senado com brados em defesa da Justiça brasileira — depois que uma gravação mostrou ao país um senador dizendo que ia combinar com os juízes do Supremo uma ajudinha a um condenado.
Nunca se viu suas excelências tão austeras e obstinadas no cumprimento cego da lei. Agora, com o vilão Eduardo Cunha na parada — e sem o gravador do filho do Cerveró —, os supremos companheiros sabiam que, com qualquer decisão contrária ao lobo mau da Câmara, era correr para a galera. Aí foi aquele festival de piruetas jurídicas e togas esvoaçantes que tanto alegram os patrões. É ou não é valente esse STF?
E que a maior empresa nacional foi depenada pelo partido governante, com um bando de heróis progressistas na cadeia (da ilegalidade), incluindo o tesoureiro desse partido (mais um). Que a fraude se estendeu à maquiagem das contas públicas, terminando de esculhambar as finanças nacionais — o que trouxe para o Natal (este e os próximos) a volta do desemprego e a maior inflação em 12 anos.
Com todo o respeito ao lobo mau, essas façanhas são obra da loba boa e de sua matilha (o ministro Barroso ensinou que não é quadrilha).
Se você quer apoiar Dilma para se sentir de esquerda, vá em frente. Só não vale levantar a bandeira e esconder o legado (lembre-se: Lula é o único que não sabia). Mas se o seu interesse é por solidariedade, opte pelas legítimas que não soltam as tiras: Zilda Arns, Ruth Cardoso, Betinho (sem o contrabando ideológico) e outros que ainda estão por aí, como José Júnior e AfroReggae (leia “No fio da navalha”, de Luis Erlanger, e entenda o que é arriscar a vida pela sua gente).
Se é para defender Dilma na mesa de bar, seja gentil e puxe cadeiras para Bumlai, Lula, Cerveró, Vaccari, Duque, Erenice, Delcídio, Pimentel, Dirceu e quantos mais couberem na confraternização.
Sem essa rede de amigos, você nem saberia quem é Dilma Rousseff. Ao final, pague a conta deles, como você tem feito nos últimos 13 anos — e faz questão de continuar fazendo nos próximos três.
Guilherme Fiuza
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