O Supremo Tribunal Federal acaba de ditar como se deve fazer a política no Brasil. Como fez isso? Interpretando a letra da lei e a norma constitucional e, assim, derrubando um rito que a Câmara dos Deputados havia arrumado para tratar do impeachment presidencial. Decidiu que o voto para instalação da Comissão Especial para análise da questão na Câmara deve ser aberto (isso não diz respeito ao regimento interno?) e que o Senado também deve votar pela acessibilidade do processo, entre outras decisões. Em 1992/Collor, não houve votação sobre admissibilidade. Juristas ficaram escandalizados com os votos de alguns ministros, sobrando a impressão de que o Judiciário passou a ditar regras aos representantes da soberania popular. Por que isso ocorre?
Porque já não se faz política como antigamente. Há um bom tempo, a política presta exame no vestibular das cortes judiciais e, só após aprovação de juízes, passa a ser desenvolvida. Entra, assim, com um pé mais baixo na Tríade dos Poderes arquitetada por Montesquieu em 1748. Nunca como nos últimos tempos, a política foi tão objeto de contestação, dando origem ao que se convencionou chamar de “judicialização”. A verdade é que a democracia cada vez mais recebe aulas do Poder Judiciário. A tendência de maior participação dos tribunais em ações legislativas e executivas decorre da “judicialização” das próprias relações sociais, fenômeno que se expressa de maneira intensa em democracias incipientes.
Ante a avalanche de recursos que batem às portas da nossa mais Alta Corte, emerge a questão: o STF deve entrar no terreno legislativo ou só informar às Casas congressuais sobre suas omissões? A Alta Corte, lembre-se, só age quando acionada. Sua missão precípua é dicere lex, como ensina Bacon, interpretar a Constituição, ante a falta de clareza ou inexistência de leis que detalhem os assuntos de interesse social. Mas é possível enxergar uma dose de exagero por parte dos magistrados. De uma atitude cautelosa no passado, quando apenas comunicavam ao Parlamento a ausência de normas, passaram a entrar fundo na esfera da política, fomentando desconforto na representação parlamentar. Sob o empuxo de demandas da sociedade, capitaneadas por organizações, o STF toma decisões de impacto, sem se incomodar com constantes críticas de que invade o território legislativo. Veja-se esse recurso do PC do B contra o pedido de impeachment da presidente Dilma. A questão mais aguda desses últimos tempos – o impeachment da presidente - caminhará após o Judiciário apitar o início do jogo. Tem sentido? Em termos. Não pode, por exemplo, mudar a liturgia já conhecida. Deve apenas aclarar questões.
Acionado para se manifestar no caso do impeachment, o STF, por meio do ministro Edson Fachin, procurou fazer uma leitura da legislação de 1950, relativa à questão, à luz da CF de 1988. Ele fez sua leitura. Que se imaginava adequada, até porque obedeceu ao rito de 1992, por ocasião do impeachment de Collor. A maioria dos ministros derrubou, porém, suas teses. E os ânimos se acirraram, até na sala da própria corte. Ouça-se o protesto do ministro Gilmar Mendes, reconhecendo o casuísmo: “Assumamos que nós estamos fazendo uma manipulação do processo, para efeito ad doc. Para interferir no processo. Mas vamos dar a cara a tapa, vamos assumir que estamos fazendo isso com endereço certo. Estamos tomando uma decisão casuística." . Será que o STF está se excedendo em sua missão?
O fato é que o país passou a se abrigar em uma nova arquitetura de cunho jurídico-política. Nos últimos anos, o Poder Executivo começou a inundar os canais da Justiça com a finalidade de ampliar e garantir decisões. O Legislativo, por sua vez, com sua planilha de Comissões de Inquérito, energiza a luta política, tendo quase sempre como foco o Poder Executivo. Já o Ministério Público, em sua missão de defesa da sociedade, flagra ilícitos de toda ordem, encaminhando farta pauta de conflitos ao Judiciário. Partidos políticos e entidades recorrem às Cortes em defesa de suas posições, não raro recorrendo a Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs).
O fio que conduz ao novelo da “política judicializada” está na interpretação de direitos institucionalizados. Não se trata mais de definir o direito de cada indivíduo, mas de interpretar e mensurar seus limites. A CF de 88 é o pano de fundo desse contencioso. A “Constituição Cidadã” escancarou o portão das demandas de classes e grupos. Definiu direitos, mas deixou sua regulamentação em aberto. E, ao final, o Judiciário é convocado para interpretar a letra constitucional. Ao decidir se os Poderes Executivo e Legislativo, partidos e outras instâncias agem de acordo com a Constituição, o Supremo acaba definindo o modus operandi da vida política nacional.
Lembre-se que, no princípio do Estado moderno, o Judiciário era mero executor de leis. Montesquieu ponderava que juízes significavam a boca que pronuncia as palavras da lei, entes que não podem aumentar ou enfraquecer seu vigor. O tripé dos Poderes alinhava-se numa reta, embora o Legislativo tivesse maior projeção. Com o advento do Welfare State, o Executivo passou a intervir de maneira forte para expandir a rede de proteção social. E a legislar, fato hoje medido entre nós por medidas provisórias e leis que nascem nas ante-salas dos governantes.
Em suma, os textos legais, férteis e ambíguos, propiciam condições para a instalação de um processo de “judicialização” da vida social. O Legislativo dá mostras de fragilidade. O que faz é questionado e o que deixa de fazer é corrigido por outras áreas. Como o poder não admite vácuo, a Corte o tem preenchido com sua interpretação (alguns falam de legislação judicial) constitucional. O temor é de que os princípios da autonomia, harmonia e independência dos Poderes, sob sistemas políticos em fase de consolidação como o nosso, se tornem frouxos e frágeis. O STF, por exemplo, começa a ganhar adjetivos indecorosos nas ruas.
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