sexta-feira, 26 de julho de 2024

Mercado é o quarto poder na anarcodemocracia digital

O apagão ocorrido no universo da internet na semana passada veio confirmar que a ideia de que o mundo digital é uma espécie de paraíso da democracia plena não passa de um mito. Um erro cometido por uma única megacorporação de informática chamada CrowdStrike bastou derrubar sistemas privados e governamentais em vários países. A pisada na bola dessa empresa (com nome digno daquelas operações secretas dos filmes de espionagem) ocorreu durante um upgrade em um serviço que prestava à Microsoft.


Dito de outra forma, centenas de milhares de cidadãos mundo afora tiveram suspensos por muitas horas os seus direitos de ir e vir, de se comunicarem, de acessarem saúde, educação, trabalho e consumo. Se tal pandemônio pode ocorrer por falha involuntária de apenas uma empresa, será que alguma organização ou indivíduo não conseguiria fazer o mesmo deliberadamente?

Nesse ponto é preciso chamar a atenção para o aspecto crucial, de natureza política, que normalmente passa despercebido na atuação desse tipo de corporação tecnológica com alcance global. Elas têm se tornado verdadeiras donas da democracia, da verdade e até mesmo das diferentes expressões do direito. Apesar do seu colossal alcance público, são empresas privadas, que têm dono, mas controlam as redes sociais, aplicativos, internet, sistemas operacionais de computadores e celulares. enquanto prestadores de serviços, acessam inclusive o sistema financeiro, as agências de inteligência, segurança pública e o setor de defesa. Tudo agora turbinado por inteligência artificial e machine learning.

As autoridades reguladoras e legislativas têm demonstrado dificuldade em acompanhar a velocidade de desenvolvimento das tecnologias que transcendem fronteiras. Se, por um lado, os erros (e as vontades) desses novos atores globais podem afetar até o funcionamento das democracias, por outro lado, falta capacidade ao sistema de “freios e contrapesos democráticos” de enfrentar esses excessos adequadamente.

Podemos dizer que a caduquice dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (ou de qualquer governança multilateral) nesse tema abre espaço para que o próprio mercado assuma uma posição de Quarto Poder Moderador na arena global dos negócios digitais.

Foi justamente o que aconteceu esta semana em reação ao apagão provocado pela CrowdStrike. Imediatamente, ainda na manhã seguinte ao apagão, na abertura do pré-market da Bolsa de Nova York, os mercados já haviam derrubado o preço das ações da empresa em quase 20%, e continuam em baixa esta semana, enquanto as ações da sua concorrente SentinelOne subiam 10%.

Enquanto isso, passado uma semana desse incidente com escala planetária, o Congresso americano não havia feito mais do que convidar a CrowdStrike para “prestar informações” sobre o apagão.

Nada contra as companhias digitais. Pelo contrário, elas representam um avanço tecnológico com potencial de transformar para melhor a sociedade, os governos e os negócios em uma escala formidável. No entanto, isso não dispensa o Estado e a sociedade civil das suas atribuições como garantidores dos interesses individuais e coletivos, bem como dos princípios democráticos.

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