Uma década atrás o escritor e ambientalista britânico George Monbiot já alertava sobre a degradação do chão em que pisamos — tratamos feito lixo essa estrutura biológica que produz 99% das calorias de que precisamos. Mais recentemente, Monbiot publicou o premiado “Regenesis: feeding the world without devouring the planet”(em tradução livre, “Regênese: alimentando o mundo sem devorar o planeta”), em que destrincha vários caminhos ainda possíveis. Só que a janela do tempo vai se fechando, e preferimos não ver.
Nenhum bípede vive um só dia sem deixar algum impacto no mundo à sua volta, repete à exaustão a grande dama Jane Goodall, do alto de seus 90 anos. Mesmo atos comezinhos, cotidianos, fazem diferença. O que cada um precisa decidir, acrescenta ela, é que tipo de diferença no mundo quer fazer. Para honrar a jornada que nos é dada no chão da Terra, tem pouca serventia a esperança entendida como ato passivo. A esperança real não é almoço grátis — exige ação e comprometimento.
E o Brasil de 2024, tragado pelo desastre ambiental de magnitude acachapante no Sul do país, revela toda sua gama de ações e manifestações contraditórias. Recursos que andavam desperdiçados ou adormecidos avivaram-se, formaram correntes de eficiência, enquanto fabricantes de caos aproveitam para espalhar vilanias. Somente com o baixar das águas, quando o cara a cara com a devastação se fizer mais real, se verá melhor o grau de maturidade da sociedade brasileira. Um fato, contudo, pode ser registrado desde já: sorte do país que tem liberdade de imprensa em tempos horrendos. A cobertura da grande mídia profissional está sendo um dos alicerces nessa dolorosa travessia nacional.
Vem à mente, nesse aparente desarranjo da natureza com seus ocupantes humanos, um trecho lindo do discurso da polonesa Olga Tokarczuk ao receber o Nobel de Literatura em 2019, em tradução de Gabriel Borowski:
— Estamos todos, nós, plantas, animais, objetos, imersos no mesmo espaço regido pelas leis da física. Esse espaço comum tem seu formato, em que essas leis esculpem uma quantidade incontável de formas mútuas e correspondentes. Nosso sistema circulatório se parece com as redes de drenagem, a estrutura de uma folha é semelhante aos sistemas da comunicação humana, o movimento das galáxias faz pensar nos redemoinhos da água que escorre na nossa pia. O desenvolvimento das sociedades lembra as colônias de bactérias. As escalas micro e macro revelam um sistema infinito de semelhanças. O modo como falamos, pensamos e criamos não é nada abstrato e desligado do mundo, mas é antes uma continuação, em outro nível, de seus processos incessantes de transformação.
Na semana passada, um cavalo de ferraduras escorregadias, equilibrado num improvável pedaço de teto ainda não tomado pelas águas, comoveu o mundo. Fotografado do alto, permanecia absurda e teimosamente de pé, imóvel, sozinho, sem chão. Éramos nós que ali estávamos. Para ser salvo, o animal precisou confiar nos humanos que dele se aproximaram — qualquer tentativa de coice ou movimento de defesa poderia lhe ser fatal. Por instinto ou impossibilidade de se mover, ele correu o risco de confiar. E deu-nos de presente um radioso momento de irmandade entre espécies. Quem não se emocionou com a entrega desse animal de 350 quilos aos braços de brigadistas que nunca vira não merece saber o que é ser humano. Nem animal.
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