O quadro é alarmante, não só pelas águas que dizimam cidades inteiras, mas também pela propagação industrializada e intencional de desorientação. Com a cidadania submersa, a perversão do fanatismo antidemocrático jorra pelos bueiros. Há mensagens inconcebíveis circulando massivamente. Umas afirmam que não adianta fazer doações porque o governo federal está barrando caminhões que rumam para o Rio Grande do Sul. Falso. Outras sustentam que Exército e os bombeiros negam ajuda aos desabrigados. Invenção dolosa. Os exemplos de má-fé são caudalosos, tóxicos, e, embora sejam desmascarados a toda hora, deixam rastros de devastação moral e cívica.
A produção em larga escala de mais essa leva de fake news é um trabalho de organizações subterrâneas e subaquáticas que operam longe da luz do dia e consomem rios de dinheiro infecto. São usinas superindustriais que geram as falácias aos borbotões e nunca aparecem publicamente – atuam no submundo, clandestinas. Mais que soturnas e esquivas, são usinas invisíveis. Mais do que abjetas, são eficazes. Abastecem caudalosamente as multidões de idiotas inúteis que trabalham de graça, noite e dia, para fazer escoar todas as sandices asfixiantes pelas redes (anti)sociais.
Se as grandes organizações da mentira atuam nas sombras, os operários alienados e alienantes que trabalham para elas como escravos mostram sua cara sorridente. São os tios e tias do Zap, você os conhece. Quando interpelados pelo bom senso do vizinho de condomínio, protegem-se na desculpa de que apenas exercem sua “liberdade de expressão”. Estão errados em tudo, inclusive nisso. Estão errados principalmente nisso.
Em primeiro lugar, as agências camufladas de onde recebem a porcariada que distribuem não têm direito à liberdade de expressão, nem poderiam ter. A liberdade de expressão é um direito da pessoa humana, não de pessoas jurídicas ou de organizações criminosas. O Estado, as empresas e os partidos políticos não têm liberdade de expressão, pois não são pessoas. A liberdade de expressão é um direito humano, um direito de gente de carne e osso, não uma licença econômica ou corporativa.
Portanto, quando um desses grupelhos ilegais ou uma dessas big techs impulsionam falsidades que lesam a saúde pública e a integridade física de milhões de seres humanos, não é de liberdade de expressão que estamos falando, mas de um inaceitável abuso do poder econômico. A finalidade desse tipo de abuso é fazer propaganda do caos e instaurar um ambiente em que “ninguém acredita em mais nada”, como sintetizou Hannah Arendt numa célebre entrevista. Em resumo, não aceitemos mais chamar de “liberdade de expressão” o que não passa de abuso destrutivo do poder econômico.
Isso posto, falemos agora da liberdade das pessoas, as tais idiotas inúteis que se comprazem com a tarefa de disseminar as notícias fraudulentas em troca de nada – ou, melhor dizendo, em troca do gozo imaginário de se olharem no espelho e se chamarem de “patriotas”. As voluntárias do obscurantismo, por certo, contam com o direito de proferir e reproduzir tolices de mau gosto. Sim, elas são livres para pronunciar o impronunciável. Elas só não têm direito de dar seguimento a crimes.
Aí vem o ponto mais embaraçoso. Elas não sabem distinguir uma coisa da outra. A ideia que carregam de liberdade é uma não ideia: elas concebem a liberdade como uma espécie de bocarra, uma porteira aberta nas fronteiras do corpo para dar vazão aos impulsos viscerais, a despeito das convenções e das normas básicas do convívio civilizado. A liberdade seria, enfim, o triunfo do bicho sobre o humano. É como se o sujeito dissesse “eu sou livre para oprimir você e exercer contra você a minha estupidez essencial”.
E qual a origem dessa concepção pulsional de liberdade? Sigo aqui a sugestão do psicanalista Ricardo Goldenberg. Em um breve ensaio, Do cinismo ao descaramento (no livro O MalEstar na Cultura Revisitado, organizado por Lucia Santaella, publicado pela Estação das Letras e Cores), Goldenberg localiza no Marquês de Sade (17401814) fantasia de que a “liberdade individual” incluiria um suposto “direito” de “gozar do próximo sem nenhum entrave” (“gozar”, aqui, é sinônimo de abusar). Em Sade, o sujeito livre é aquele que consegue juntar o pior vício da aristocracia (dispor do corpo do outro como dispõe da terra) ao pior vício da burguesia (explorar energia do outro para acumular dinheiro e prazer). Em suma, o homem livre é amoral, assassino, pedófilo, estuprador e ditador. No meio de tamanha enchente de mentiras, a gente pode acrescentar: e fascista. A liberdade fake, a liberdade sádica, que no fundo é a negação de toda liberdade, está levando o Brasil ao naufrágio total.
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