sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

O primeiro passo é conhecer o Brasil

Se você acredita que o Brasil está progredindo a um ritmo medíocre, está certo; se pensa que estamos na iminência de um retrocesso grave, é provável que esteja certo também.

Só estará errado se achar que dispomos do tipo e do montante de conhecimentos de que vamos precisar para sair desta enrascada em que há anos nos vimos arrastando. Afirmação arrojada, bem o sei. No transcurso das últimas três ou quatro décadas, as pesquisas de opinião e os levantamentos do IBGE têm nos proporcionado uma montanha de informações de altíssimo valor. O problema, creio eu, é que tais informações não respondem em sua inteireza às indagações que se imporão quando nos depararmos com o inexorável desafio de reformar a sério nossa sociedade e nossas instituições políticas.

Ao dizer “inexorável”, peço permissão para passar ao largo do mar de mazelas que debatemos dia sim e outro também: estagnação econômica, desigualdades abissais, nível médio de escolaridade abaixo da crítica e condições sanitárias cujas deficiências conhecíamos de longa data, mas sobre as quais agora, com a pandemia, não cabe mais discussão. Tampouco me parece caber dúvida quanto à persistente perda de consistência das instituições: da alta administração pública, civil e militar, assim como do Legislativo e do Judiciário.



Volto aos conhecimentos de que necessitamos. A montanha de informações de que dispomos se compõe basicamente de dados “atomizados”, quero dizer, colhidos por meio da aplicação de questionários a indivíduos isolados e depois agrupados em categorias (classes A, B, C, D, diferenças entre grandes e pequenos municípios, etc.). Os resultados de tais operações não são grupos reais. Se nosso objetivo é evitar retrocessos e construir um sistema político capaz de impulsionar o desenvolvimento, informações desse tipo não são suficientes. Sociedades e sistemas políticos assentam-se sobre estruturas, vale dizer, sobre tramas de relações interindividuais e intergrupais, por sua vez amalgamadas por valores e crenças que não se dão a conhecer ao primeiro estímulo de um entrevistador.

Quem deu um passo adiante foi o antropólogo Roberto DaMatta, ao dissecar a expressão “você sabe com quem está falando?”. De fato, a proverbial “carteirada” é um retrato da estratificação autoritária que permeia nossa sociedade. Penso, no entanto, que a necessidade de um indivíduo de status superior se dirigir a um de status inferior ordenando-lhe pôr-se “em seu lugar” indica que a estratificação já está sendo questionada. Não precisaria fazê-lo caso se tratasse de uma estratificação estática, imemorial.

Façamos uma comparação com a França. Em 1920, em sua maravilhosa Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust evoca “... a ideia um tanto indiana que os burgueses (de algum tempo atrás) formavam a respeito da sociedade, considerando-a composta de castas fechadas, onde cada qual se via, desde o nascimento, colocado na posição que ocupavam seus pais, e de onde nada os poderia tirar para que penetrassem numa casta superior, a não ser raros acasos de uma carreira excepcional ou de um casamento inesperado” (vol. 1, pág. 21).

Vinte anos mais tarde, em sua igualmente maravilhosa Suíte Francesa, Irène Némirovsky trafega por um labirinto praticamente igual, o da França invadida pelos nazistas. Claro, não tendo tido escravidão, os pobres franceses não eram miseráveis desprovidos de tudo, como os nossos, nem precisavam as camadas mais altas de recorrer à “carteirada”. A estratificação, os limites prescritos nas interações e nos modos que os indivíduos observavam ao se dirigirem uns aos outros, tudo era rígida e minuciosamente regulamentado.

Voltando ao Brasil, o que mais chama a atenção é a inexistência sequer de uma classe média claramente delineada, com valores e padrões próprios de comportamento. Nunca tivemos uma petite bourgeoisie assentada sobre a pequena propriedade urbana ou rural. A maioria das camadas que têm o privilégio do vínculo empregatício vive de empregos instáveis e de má qualidade. Na área educacional do atual governo tivemos três ministros, mas nenhum plano.

Tampouco temos elites no sentido positivo da palavra, ou seja, grupos de pessoas (com ou sem recursos econômicos vultosos) com vocação de exemplaridade, devotados em alguma medida ao bem comum, e capazes de transitar pelos diferentes setores funcionais da sociedade, agregando atitudes e balizando o modo de agir dos três Poderes. Não estranha, pois, que estejamos presenciando um processo de “desinstitucionalização”, com sinais bem perceptíveis de deterioração em toda a extensão do tecido político.

Sem uma classe média robusta, sem elites no sentido que acabo de expor, com um ritmo pífio de crescimento econômico e um sistema de ensino de péssima qualidade, a hipótese do retrocesso não pode ser descartada. Nas condições aventadas, as instituições democráticas tendem a perder respaldo e robustez, permanecendo incapazes de impulsionar a economia, vulneráveis às formas de corrupção mais obscenas e aumentando a possibilidade de crises graves.

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