sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Eu, detratora

Eis que acordei nesta terça-feira e havia sido aquinhoada com mais um adjetivo: detratora! Para quem já foi isentona, comunista, tucana, cirista (ontem mesmo estava “indicada” para vice na chapa do ex-governador) e sabe-se lá mais o que, até que o novo carimbo tinha uma dramaticidade meio teatral. O detrator pode ser um personagem de uma futura versão de Among Us, quem sabe.

Mas não era nada recreativo, não. O jornalista Rubens Valente revelou em sua coluna no UOL que uma agência contratada por vários ministérios, a BR+Comunicação, elaborou uma lista a pedido do Ministério da Economia relacionando 77 formadores de opinião, entre jornalistas, professores universitários, economistas, youtubers e militantes partidários com forte presença sobretudo no Twitter e os classificou em “detratores”, “neutros informativos” e “favoráveis”.

A tosquice, marca indelével do governo Bolsonaro, aparece no tal monitoramento em todo o seu esplendor. Nomes grafados errado, personagens repetidos e classificados em mais de uma “caixa”, mistura de pessoas com background e atuações completamente distintas e ideias de jerico a respeito de como a pasta deveria “atuar" para neutralizar os detratores e tirar vantagem dos “favoráveis”.



Um trabalho inqualificável, de fazer corar qualquer tuiteiro amador. Ainda assim dinheiro público foi gasto nessa bizarrice. O pedido foi feito em agosto! Para que se destinava a tal lista? Para pautar ações da pasta. E o que foi feito? Nada, jura a pasta, que passou o dia ontem pedindo desculpas aos “detratores” e tentando emendar um soneto que já nasceu condenado.

A tal empresa emitiu uma nota patética, em que aponta que houve um “erro de processo” em que a expressão “negativo” virou “detratores”. Nem o corretor ortográfico mais alucinado conseguiria. E por que levaram três meses para “reparar” o erro, e só quando a imprensa detratora revelou a existência do tal dossiê?

Para além do ridículo da situação, que expôs de novo a pasta de Paulo Guedes a um vexame público quando se espera do ministro da Economia ação e respostas para os seus grandes e até aqui não encarados desafios de recuperar a economia e as contas públicas, há no episódio, como também é inerente a esse governo, o viés autoritário, de profunda incompreensão do papel da imprensa.

Para Bolsonaro e seus auxiliares, ser crítico, mesmo que contundente, a um ministro é ser detrator. Mas mais ofensivo mesmo seria ser incluída no rol dos “favoráveis”. Os aspirantes a espiões da pasta de Guedes são tão ruins de serviço que listaram num time de sabujos os excelentes Joel Pinheiro, Matheus Hector, Pedro Menezes e Felipe Moura Brasil. Fica aqui meu desagravo a eles.

O que eles entendem como imprensa é um bando de puxa-sacos que faz malabarismos retóricos de baixa qualidade para justificar o injustificável: uma equipe econômica que deveria entregar um projeto liberal mas hoje serve de esteio a um projeto autocrático.

É até possível que a tal lista nunca tenha chegado aos olhos de Paulo Guedes, como alegam seus interlocutores. Isso não é atenuante: só mostra que falta a esse ministério hipertrofiado foco, agenda, método e trabalho para fazer.

O macarthismo bolsonarista padece de todos os defeitos do governo: é aleatório, extremamente cafona e desinformado, inócuo mesmo nas suas mais obscuras intenções e nocivo à sociedade.

É normal que ministérios tenham perfis dos influenciadores de suas áreas? Sim. Desde que eles sejam feitos com balizas mínimas de institucionalidade e que fiquem claras as intenções a justificá-los.

No caso da lista dos detratores, só se produziu vergonha para um governo que vem se lambuzando nessa cumbuca há dois anos, às nossas custas.

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