quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A iniquidade social

Obra pré-modernista, de caráter histórico-literário, Os Sertões, de Euclides da Cunha (1866-1909), publicado em 1902, foi a primeira grande crítica à iniquidade social no Brasil. Embora de caráter regionalista, ao narrar os sangrentos acontecimentos da Guerra de Canudos (1896-1897), liderada por Antônio Conselheiro (1830-1897), no interior da Bahia, teve grande impacto na opinião pública da época, em especial entre os jovens militares, sendo uma das fontes de inspiração do Tenentismo.

A obra descreve o sertão nordestino (o relevo, a fauna, a flora e o clima), o homem (o sertanejo, o jagunço, o cangaceiro e o líder messiânico) e, finalmente, a luta (as quatro inglórias campanhas do Exército para destruir o pequeno arraial de 20 mil habitantes). Nunca antes a questão social no Brasil havia sido abordada com tanto realismo, nem mesmo na campanha abolicionista, cujo coroamento fora a Lei Áurea, 14 anos antes.

A justificativa para o massacre de Canudos fora uma suposta ameaça à consolidação do regime republicano, devido ao caráter sebastianista do movimento liderado pelo místico Antônio Conselheiro. No livro, Euclides da Cunha questiona o ufanismo e o nacionalismo da época, bem como a visão idealizada que se tinha sobre a formação e o caráter do povo brasileiro.

O homem descrito por Euclides da Cunha, que fez a cobertura jornalística da Guerra de Canudos como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, 100 anos depois, vive nas periferias e favelas dos grandes centros urbanos do país, seja na condição de trabalhador informal, seja como traficante ou miliciano. A iniquidade social é a mesma. A diferença é que já não é possível resolver o problema à bala, como em Canudos, embora alguns continuem tentando.


Na época de Antônio Conselheiro não havia IDH, o índice criado para a ONU pelos economistas Amartya Sen, indiano, prêmio Nobel de 1998, e Mahbub al Huq, paquistanês, com objetivo de mensurar as condições de saúde, de escolaridade e de renda das populações e assim aferir os níveis de desigualdades entre os países. O do Brasil, divulgado no domingo passado, mostra um quadro desolador, em grande parte agravado pela recessão provocada pela “nova matriz econômica” do segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do governo Dilma Rousseff.

São impressionantes os efeitos negativos da recessão, entre os quais a existência de 12 milhões de desempregados crônicos. O índice brasileiro perdeu três posições desde 2013. De 2017 a 2018, em um ranking de 189 países, retrocedemos do 78º lugar para 79º, com um IDH de 0,761 (quanto mais próximo de 1, maior o desenvolvimento humano). Estamos atrás da Rússia e da Argentina, para usar apenas esses dois paradigmas. E muito distantes da Noruega e da Suíça, que lideram os IDHs dos países desenvolvidos.

A estagnação da escolaridade e a má distribuição de renda são os vetores mais dramáticos da nossa desigualdade, pois puxam para baixo a qualidade de vida de toda a população. O quadro é ainda mais grave porque não há igualdade de oportunidades na largada, no meio do caminho, muito menos na reta de chegada. Ou seja, do nascimento de nossas crianças à vida adulta.

A situação nos remete à questão dos direitos humanos, consagrados pela ONU em 1948 e incorporados à nossa Constituição, em 1988. Seu conceito mudou ao longo da história, desde a Declaração de Direitos de Virgínia, nos Estados Unidos (1776), e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), na França. Grosso modo, foram fundamentais para a consolidação dos Estados nacionais e para o desenvolvimento capitalista. Afinal, nem um nem outro seriam possíveis sem exércitos de massa e o chamado exército industrial de reserva, respectivamente, que requeriam mão de obra saudável e minimamente escolarizada.

É aí que mora o perigo. Com a revolução tecnológica em curso, nem as guerras nem a produção exigem a mesma disponibilidade de recursos humanos; os direitos à saúde e à educação estão deixando de ser um assunto de interesse universal, ou seja, inclusive patronal. Enquanto nos países desenvolvidos o estado de bem-estar social está em crise, na periferia do mundo deixou de ser um objetivo comum a ser alcançado. Nunca as políticas públicas de caráter social foram tão negligenciadas.

Ocorre que o mundo se move. O esgarçamento social provocado pelas políticas ultraliberais é uma realidade, seja nos países desenvolvidos, como na França, seja na periferia, como no Chile, cujo IDH, como vimos acima, é melhor do que o nosso. Com toda certeza, nas próximas eleições municipais, essa variável terá que ser considerada, tanto quanto a geração de oportunidades de trabalho e o combate à corrupção e à ineficiência na gestão pública.
Luiz Carlos Azedo

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