Uma hiperinflação que canibalizava o poder de compra dos eternos pobres e dos assalariados. Os ricos, como sabemos, nada sofriam: apenas queixavam-se com razão da “política”, do “governo” e do “Estado” como se tais entidades fossem administradas por marcianos, e não por seus compadres, sócios, amigos e parentes. Reificados e fetichizados, governo, política e Estado foram tornados reais e dotados de uma autonomia social absurda, cuja função é a de isentar os poderosos e letrados; os que, de algum modo, se livraram das suas responsabilidades sociais. Pois, em nenhum país que se preze, pode haver um Estado e uma administração pública constituídos por estrangeiros ou outros; exceto neste nosso Brasil, onde se diz com um ar casual: “Pois é! Ele é meu pai, mas esse negócio de Presidência, governo e política é coisa dele. Eu não tenho nada com isso.” O lixo da casa é jogado na rua; o problema não é nosso, é do lixeiro e da prefeitura.
A dolorosa percepção do mal-estar desses tempos críticos está ligada a uma avassaladora informação. Hoje, não se pode mais desculpar ou tolerar a fabulação de que nada temos a ver com o “Estado” ou o “governo” (o mundo da rua), que seriam os responsáveis exclusivos pelo lado ruim da vida, enquanto ainda almejamos um emprego (mas não um trabalho) público — zona que seria de todos e, por isso, todos poderiam dela tirar proveito: o emprego vitalício e bom salário, além de privilégios aristocráticos. Somente agora é que começamos a discernir que nosso mundo mudou. A casa ficou mais perto da rua, ética e valores políticos e econômicos são espinhosa e toscamente discutidos. A direita surgiu de dentro da esquerda, e a franqueza hoje é rude. Ficou muito difícil esconder o roubo público. Mas o pior é que a igualdade perante a lei deixou a teoria e tornou-se, quando é possível, uma prática.
O Brasil tem uma dimensão nacional como país (na qual a dimensão política é básica), mas não deixou de ser uma coletividade colada a si mesma, precisamente porque tem apenas uma língua nacional, bem como costumes e rituais que obviamente interferem na sua problemática formal e estatizada. Hoje não dá mais para se preocupar apenas com a casa jogando a responsabilidade na rua e nos políticos que, num estado democrático de direito, foram paradoxalmente feitos e eleitos por nós. Não há como construir um elo eficaz entre eleitos e eleitores, povo e governo, enquanto a casa não se juntar com a rua. Creio, modestamente, que isso vale igualmente para a América Latina, que, por sinal, não fala latim como ainda pensam alguns amigos americanos...
Voltemos à inflação para lembrar que, entre 1980 e 1989, a média inflacionária do Brasil era de 233,5% ao ano; e de 1990 até 1999, ela chegou a um surreal quase 500%. O “dragão inflacionário”, denunciado como culpado exclusivo dos nossos problemas, porém, terminou quando FH e seus cavaleiros do Apocalipse conseguiram liquidá-lo, apesar de muita gente boa (de um lado e do outro) ter sido contra, usando o velho legalismo ibérico. Hoje, chama atenção um índice inflacionário de 0,51, mais baixo do que o da França e o dos Estados Unidos.
A inflação não mais nos afeta tanto quanto, na virada do século XIX, os subsociólogos nacionais faziam da mistura de raças uma tara de origem e, no século passado, transformaram a luta de classes (que num país de barõezinhos e patriarcas escravocratas sempre foi inibida) num pau pra toda obra. O cultural tem muitas determinações. Controlamos a inflação só para nos darmos conta da “corrupção estrutural”, os elos espúrios entre o nosso lado oficial e formal (governo, Estado) e o informal das nossas simpatias, parentesco e partidarismo. Quando a ética do dever público se curva à moralidade das relações pessoais, e se transformam numa patologia, descobrimos outro mal. Um malefício antigamente desculpável impresso no “tirar partido das oportunidades”. Algo um tanto carnavalesco e popular: a malandragem ou a sacanagem — esses miolos da corrupção à brasileira...
Roberto DaMatta
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