quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Censuras pós-modernas

“O que a gente pode fazer por você hoje?”
Bordão publicitário do Banco Santander
“Vale a pena observar que os próprios órgãos sexuais, cuja visão é sempre excitante, dificilmente são julgados belos; a qualidade da beleza, ao contrário, parece ligar-se a certos caracteres sexuais secundários” 
Sigmund Freud, em "O mal-estar na civilização"

Existiria um ponto de encontro entre o capital financeiro, a arte e o sexo? Uma pista inicial talvez resida na conexão entre dinheiro e cultura. Outra pista poderia vir das tensões estruturais entre o poder e, de novo ela, a cultura. De todo modo, é uma discussão intrincada, labiríntica.

Quando se fala disso, invariavelmente alguém aparece com aquela velha e batida frase “quando ouço falar em cultura, logo puxo meu revólver”, que era atribuída ao nazista Göring (mas parece ter sido criada por Hanns Jost, exatamente para criticar o nazismo). Logo em seguida vem aquela outra, que se credita a um magnata do show business americano: “Quando ouço falar em cultura, saco meu talão de cheques”. São chavões no debate cultural, mas são pertinentes.

O revólver e o talão de cheques se revezam como signos de poder que espreitam a arte, assim como o monopólio da violência (Estado) e a concentração de riqueza (capital) se revezam no comando – no direcionamento explícito – dos processos culturais. Mandam fazer e desfazer. O nazismo mandava fazer os filmes de Leni Riefenstahl, que, mesmo sendo nazistas, emulavam certa beleza. Com a outra mão, mandava desfazer acervos, tornando proscritas as obras classificadas como “arte degenerada”. A grana também manda fazer e desfazer. Manda fazer, digamos, celebrações como o Rock in Rio. E manda desfazer a exposição Queermuseu – cartografias da diferença na arte brasileira.


A exposição, que estava aberta havia quase um mês no Santander Cultural em Porto Alegre, foi abruptamente encerrada depois que surgiram protestos na internet alegando que as imagens ofenderiam as tradições da família brasileira, etc. O banco comprou (em sentido figurado) a tese de defesa dos bons costumes etc. e acabou com a coisa. Defendeu-se: “Isso não faz parte de nossa visão de mundo nem dos valores que pregamos”.

Acerca da declaração do banco, duas contextualizações semânticas são necessárias. Primeira: o termo “isso” se refere às imagens mais controversas da exposição, com alusões a universos eróticos e léxicos pornográficos. Logo, “isso” é “aquilo”. Segunda contextualização: o termo “valores” não designa valores pecuniários, ainda que o enunciador seja um banco, mas “valores morais”. E o adjetivo “morais” decorre diretamente da categoria “moral e bons costumes”, que carrega uma nostalgia do puritanismo, de um ideal de abstinência santa, de combate carnal contra o desejo.

Pergunta: como se desenha a compatibilidade axiológica entre essa moral estrita e as manobras radicais da ciranda financeira? Não há respostas à vista.

De todo modo, como as criações de Bia Leite e Adriana Varejão estariam se chocando com os tais “valores”, o banco, proprietário do espaço em que as obras se abriam ao público, mandou fechar a exposição. Net takeaway: fecha!

Pergunta: esse tipo de critério moral pode ser considerado válido e efetivo para dar os parâmetros de fruição da arte? A resposta é não. Mas por quê?

O discurso moralista faz parte da rotina. Há moralismos de esquerda, há moralismos de direita (como no caso presente). Há moralismos católicos, há moralismos islâmicos, há moralismos protestantes, há moralismos ateus. O problema, aqui, é a “validação” (para usar um vocábulo caro, sem trocadilho, ao linguajar dos estrategistas a serviço dos conglomerados bancários) do discurso moralista por uma casa de cultura. O problema é dar força de lei ao discurso moralista.

Fazia tempo que o argumento moralista não aparecia com tamanha explicitude. É um argumento feio quando velado; tornado explícito, é uma escatologia vulcânica, uma mula sem cabeça desferindo coices nos olhos das crianças. O argumento moralista é o quinto cavaleiro do apocalipse.

Embora a palavra cultura, multívoca, seja avessa a simplificações, podemos afirmar que a função da cultura nos domínios da arte não é outra que não a de abrir um espaço de liberdade entre a imaginação e as tiranias moralistas. A arte a serviço de uma moral não é arte (não é nem mesmo decoração de parede). Moralismos de todas as religiões já queimaram livros, já levaram artistas ao suicídio, já quiseram reescrever fábulas infantis (inclusive as de Monteiro Lobato), já execraram o modernismo, já impuseram filtros ou pedágios entre o olhar do público e a expressão da beleza, já satanizaram as traduções mais ou menos estéticas das sexualidades, acusando-as de vulgaridade. O moralismo adora desqualificar a arte que não lhe agrada dizendo que ela não é expressão do “belo”, mas apenas do pornográfico. Acusa de pornografia a excitação para a qual não sabe dar resposta e se refugia na desculpa de que a pornografia, quando assim chamada, é uma expressão estética passível de censura.

Mas nem a pornografia é censurável nem a exposição Queermuseu era pornográfica. Ora essa. O moralismo se excita em brios violentos: “Crianças de escolas públicas vão ver isso! Manda fechar! É o fim dos tempos!”. O que eles fariam com as estátuas em mármore representando o hermafrodita (Hermes e Afrodite num só corpo), que a cultura grega nos legou? Esconderiam dos alunos das escolas públicas? O que fariam com o mito de Leda e o cisne? Acusariam de zoofilia? O que fariam com Xenofonte, quando ele comenta a imprudência de Critóbulo por ter roubado um beijo ao filho de Alcebíades, que era um jovem de “tamanha beleza e frescor”?

A censura moral é a face menos pudica de uma tara autoritária que se perdeu do objeto. É de mau gosto, é inaceitável.

E o que o Santander pode fazer por você hoje? Vejamos: que tal voltar atrás?

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