Somos legalizantes, legalistas, legalóficos e legalomaníacos. Cremos que a vida social e seus costumes mais arraigados; ou os seus laços mais sagrados, mudam com a lei. Mudamos a lei para não mudar o nosso conforto e a nossa perene má-fé. Em outras palavras, para não segui-la.
A mentira em nome do povo tem sido a nossa moeda corrente, mas tudo dentro da lei. Preferimos dar cargos públicos a gente nossa, gente boa, gente do nosso coração, alijando pessoas capacitadas, mas tudo dentro da lei. Encorajamos a confusão entre o pessoal e o público, o local e o nacional, o nacional e o internacional, mas tudo dentro da lei. Tentamos controlar a maquina pública naquilo que ela pudesse nos prejudicar e em tudo que ela pudesse nos ajudar, mas tudo dentro da lei.
A lei nos agasalha, protege, guia e nos ajuda a acusar, a patrulhar e a perseguir os nossos inimigos.
Somos, acima de tudo, legais.
Bons companheiros e camaradas. Amigos de cofre e de mesa, de boa arte e comidas. Tudo dentro da lei. Transformamos interesses pessoais e partidários em leis e instituições, dentro da lei.
Combatemos o bom combate eleitoral usando tudo o que estava e não estava ao nosso alcance, mas dentro da lei. Rigorosamente dentro da lei. Nossa agremiação recebeu propinas pagas a obras não realizadas e contratos superfaturados, mas tudo dentro da lei. Tudo impecavelmente aprovado pelos tribunais da Terra e dos céus.
Ela nasceu de um buraco negro e criou a realidade. Construindo-a, ela permite desfazê-la. A nosso gosto e prazer, é claro. Sem amor ou ódio, sem proposito ou alvo, pois a lei é paras todos. Mas, como diz a própria lei, ela é mais para nós do que para eles.
Nossa fraternidade — há quantos anos eu te conheço? — é melhor e, sejamos legais, muito mais honesta e correta do que a deles. A lei pende sempre para o nosso lado, mesmo que ela tenha essa mania estúpida e liberal de ser para todos.
No mundo do poder pode-se até mesmo esquecer e anular os crimes e a História, desde que seja dentro da lei. A prescrição como figura legal é uma engenhosa máquina do tempo. Com ela, fazemos o tempo retornar para anular crimes. Até Hitler teria sua prescrição especial e compreensiva entre nós.
Lei, lei, lei e lei. Contra a verdade, a lei. Contra a ingenuidade, a lei. Contra o outro, a lei. Contra a boa vontade, a lei. Não insistam: nosso maior adversário não são o crime e a ausência de responsabilidade pública encapsulados imbecilmente como um moralismo barato e de direita: é a lei. Vamos revoga-la? Jamais. Vamos, isso sim, reformá-la e usá-la em nosso benefício como sempre temos feito. O legal é maior que o justo e o real. Adoramos a lei em sua majestade paragrafada, subdividida em sentenças claras, escrita por linhas tortas, mas sempre certas quando nós a temos nas mãos e a aplicamos. Na mentira, na hipocrisia e, acima de tudo, na desfaçatez, fiquem sempre com a lei e pela lei. Somos por todas as legalidades, inclusive e sobretudo pela legalidade da ilegalidade.
Somos um dos países mais corruptos, injustos e desiguais do mundo, mas temos um orgulho: estamos sempre dentro da lei!
Roberto DaMatta
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