Parece que, entre nós, a ignorância não é um desserviço público, um pecado socialCinco séculos antes de Cristo viveu Sócrates. Que tinha um amigo. Que resolveu ir ao templo de Apolo em Delfos e perguntar quem era o mais sábio dos gregos. Apolo não pensou duas vezes: era Sócrates. E isso criou um problema descomunal. Pois Sócrates, oleiro de ofício, sabia uma coisa só: que não sabia nada. Era um ignorante. E um ignorante não pode ser sábio, muito menos o mais sábio. O deus tinha se enganado. Mas o deus não se engana. Por isso é deus. E Sócrates, o ignorante, levou o resto da vida procurando a sabedoria que não tinha, para não o desmentir.
Aqui, não. Durante o período colonial as universidades foram proibidas no Brasil. No Império houve faculdades no Recife, em São Paulo, no Rio. Mas a primeira universidade foi criada apenas em 1920, a Universidade do Brasil, atual UFRJ. Temos, como país incorporado à cultura ocidental, 515 anos. Nossa mais antiga universidade não chega a 100. Diz alguma coisa? Infelizmente diz. Fala do desapreço dos governos pela escola, de baixo ao alto, do fundamental ao doutorado. Estudar, no Brasil, é heroico. Os pais humildes que querem para seus filhos vida melhor do que a que vão levando sempre acertam no remédio: “Meus filhos vão ter estudo”. Os pais “de posses” encaminham naturalmente seus filhos na mesma direção. E aí começa a tragédia. Porque os filhos dos pobres estudam nas escolas públicas, que já foram ótimas e se tornaram ruins. Professoras e professores equilibram-se nelas com estímulo perto de zero. E os filhos dos não pobres frequentam as escolas particulares, algumas muito caras, que são em geral boas. Isso não seria mais do que a expressão da estrutura social perversa em que vivemos não fosse o fato de que depois de 12 anos de estudos os filhos dos pobres vão para as universidades particulares, que não são boas — exceção para as PUCs e poucas mais —, e os filhos dos não pobres entram nas universidades públicas, que são melhores. Os filhos dos pobres não ficam, ou se endividam para estudar. Porque, justamente, são pobres, e as universidades particulares são caras. Xeque-mate. Há programas paliativos, mas de fato vamos criando um abismo entre os que sabem e os que não. Parece que, entre nós, a ignorância não é um desserviço público, um pecado social. Convivemos bem com ela.
Agora foram cortados R$ 70 bilhões do orçamento da educação. A pátria educadora ficou R$ 70 bilhões mais pobre. Já tinha pouco. Havia, na esquerda, a esperança de que agora essa prioridade saísse do papel das propagandas dos governos. Não saiu.
Sócrates foi condenado à morte pela cidade de Atenas porque inquietava as consciências. A ignorância que procura a sabedoria desequilibra privilégios, é subversiva. Se vivesse no Brasil de hoje podia ficar tranquilo. Não dariam por ele. Mas vem uma greve dos professores aí. Se o tivessem aceito como mestre numa universidade (ele não publicou nada...), talvez devesse parar agora para reclamar do descaso criminoso. Sair da Ágora onde ensinava, deixar seus alunos. O que é, para um professor, também uma forma de morte. Dói menos do que o veneno que teve de tomar. Mas dói.
Marcio Tavares D’amaral
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