Que feio é viver!
No princípio, a Igreja cristã fazia pouco caso dos aniversários. A única data que importava era a da Segunda Vinda de Cristo, e essa estava além do entendimento humano. Mas a partir do século II o nascimento milagroso começou a ser celebrado pelos cristãos do mundo inteiro, inspirando em um de seus mais célebres opositores o que talvez tenha sido o primeiro conto de Natal. O neoplatônico Celso, fazendo pouco caso do que chamava de “fábulas fabricadas”, escreveu uma versão do evento sagrado na qual Cristo nasce em uma aldeia da Judeia fruto de uma camponesa adúltera e um soldado romano chamado Pantero. Essa variação racionalista é a remota antepassada de outras mais recentes: A Última Tentação de Cristo, de Nikos Kazantzakis; O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago; O Testamento de Maria, de Colm Tóibín. Mas é Dickens quem define para nós o que é (ou precisa ser) um conto de Natal com uma árvore faustosamente decorada, doces, ponche e peru assado, e acima de tudo, a mágica transformação de sentimentos mesquinhos em generosos e altruístas.
Talvez porque todo escritor, como Celso, encarne o espírito artístico da contradição, em lugar de continuar com o tom exultante de Dickens, os contos de Natal de nossa época são em geral lúgubres e pessimistas, como se quisessem lembrar-nos que nessa data, a mais feliz de todas no calendário cristão, novas Marias continuam sendo despejadas pelo dono da hospedaria, e que novos Cristos sofrem a traição, o escárnio e a cruz.
John Cheever em O Natal é Triste para os Pobres, Alice Munro em A Estação do Pavão, Vladimir Nabokov em Natais, Sergio Ramírez em San Nikolaus ou Michel Tournier em Mamãe Noel descrevem o Natal como uma festa de angústia e solidão, como para nos advertir de que, em meio a ceias opulentas e montanhas de presentes, nossa condição humana aguarda ainda a redenção prometida.Alberto Manguel
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