sexta-feira, 29 de novembro de 2024

O golpe durou o governo inteiro

Não foi um governo. Foi uma conspiração que durou um mandato. Começou em 2019 e a arma inicial foi a mentira. Durante todos os quatro anos a mentira foi usada como método. O objetivo era sedimentar a ideia, por repetição, de que o sistema eleitoral era fraudado e, assim, minar a confiança na democracia. A partir daí seus atos pareceriam legítimos. Os desdobramentos foram sendo escritos mas eram previsíveis. Cercar-se de militares, cortejar as Forças Armadas, especialmente o “meu Exército”.

Escolher alvos que seriam atacados tanto pelo então presidente da República, quanto pela milícia digital para o desmonte institucional. Por fim levar seguidores para Brasília, produzir o “clamor popular de 64”.

O relatório da Polícia Federal ajuda a entender a força da mentira. “O grupo investigado criou, desenvolveu e disseminou a narrativa falsa da existência de vulnerabilidade e fraude no sistema eletrônico de votação”, diz a PF, no início do documento. E isso começou com Bolsonaro dizendo que houve fraude na eleição que ele ganhou. “O objetivo era sedimentar na população a falsa realidade”, para depois “ser utilizada como fundamento dos atos”.


Foi para isso que se criou a milícia digital, o gabinete do ódio. Não era apenas para hostilizar as pessoas que eles consideravam inimigos. A milícia escolheu alvos e os atacou por quatro anos. Mas o principal era o sistema eleitoral. “ Os produtores de dados falsos difundiram em alto volume, por multicanais, de forma rápida, contínua e repetitiva” a ideia de que houve fraude em 2018 e haveria em 2022.

“Por mais inverossímil que possa parecer” ela foi repetida para atingir o “público alvo”. E por que repetir tanto? “A repetição maçante das informações, mesmo que falsas, leva à familiaridade, e a familiaridade leva à aceitação.” Para completar, “os investigados fizeram uso de pessoas com posição de autoridade perante o público alvo”.

A rede da mentira era o pilar de tudo o que se seguiu depois. A trama se espalhou em núcleos e propósitos. Tudo sob o comando do beneficiário maior: Jair Bolsonaro, o homem que sempre sonhou com uma nova ditadura. O governo passou a funcionar em torno disso.

A Abin de Alexandre Ramagem não fazia inteligência de Estado. Ajudava na fabricação de mentiras. O GSI, do notório general Heleno, remanescente da linha dura do governo militar, também. Chefe da Casa Civil, depois ministro da Defesa, Braga Netto era o lugar-tenente do conspirador em chefe. Foi usado como peça chave, em 2021, quando Bolsonaro demitiu o Ministro da Defesa Fernando Azevedo e todos os comandantes. Ali, Bolsonaro achou que havia dado o golpe de mestre, escolhendo os que levariam as tropas.

O plano falhou. Há várias razões. Mas veja que, se o general Braga Netto tivesse permanecido ministro da Defesa, o general Paulo Sérgio Nogueira é que estaria no comando do Exército. O general Paulo Sérgio não só participou, como convocou uma reunião com os comandantes no dia 14 de dezembro para mostrar a minuta do golpe. Numa instituição baseada na hierarquia, o que aconteceria se o comandante do Exército dissesse sim?

No dia 5 de março, eu contei na minha coluna que os depoimentos dos ex-comandantes Freire Gomes e Baptista Jr haviam implicado diretamente Jair Bolsonaro e o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira. Disse que também Paulo Sérgio havia mostrado a minuta aos comandantes.

“É depoimento, mas está comprovado pela apreensão que foi feita”, me disse minha fonte na época. Contei que o general e o brigadeiro deram detalhes que preencheram lacunas. “E as peças foram se encaixando, como num quebra-cabeças”, me disse a fonte.

O relatório da PF é um imenso quebra-cabeças em que tudo se encaixa. Há provas robustas. Falas recuperadas, documentos apreendidos, reuniões gravadas, captura da presença dos indiciados nos locais e horas dos eventos. Além do decreto do golpe, em várias versões, havia o plano homicida “Punhal Verde e Amarelo”, a estrutura do gabinete de gestão de crise e a minuta 142. Os golpistas redigiram, discutiram, guardaram cópias e a Polícia Federal encontrou.

A ordem de Braga Netto para que a milícia digital atacasse Freire Gomes e Batista Jr. mostra como a mentira era uma arma. Os golpistas queriam neutralizar os obstáculos. Até o dia em que “neutralizar” significava matar. A mentira foi a primeira pedra no tabuleiro do horror que Bolsonaro e seus ajudantes tentaram impor ao país.

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